O serviço de responsabilização e educação para autores de
violência doméstica: Analisando a prática do município do Rio de Janeiro
The accountability
and education service for domestic violence authors:
Analyzing the practice in the municipality of Rio de Janeiro
Eliane Vieira Lacerda
Almeida |
Felipe de Moraes Borba |
Universidade Federal da Bahia - Brasil |
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Brasil |
Recibido: 27-02-2023
Aceptado: 22-05-2023
Este artigo objetiva analisar a implementação do serviço de
responsabilidade e educação para agressor condenado pela prática de violência
doméstica e familiar contra mulher. A metodologia qualitativa foi realizada nos
Fóruns de Bangu e Leopoldina, ambos no Município do
Rio de Janeiro, no Brasil. Para tanto, realizamos entrevistas com as equipes e
procedemos a observação direta das sessões dos grupos, e selecionadas como
categorias de análise a infraestrutura, o processo de implementação e a
metodologia de atendimento. A análise foi conclusiva no sentido da inexistência
de uma padronização no serviço e na ausência de capacitação para os
profissionais, em que pese as duas equipes acompanhadas tenham demonstrado
pleno comprometimento com o combate à violência doméstica e familiar.
Palavras-chave: Lei Maria da
Penha, gênero, políticas públicas, Rio de Janeiro, grupos reflexivos.
Abstract
This article aims to analyze the implementation
of the responsibility
and education service for offenders convicted of domestic
and family violence against womenº. The methodology was qualitative and empirical, carried out in the Bangu and Leopoldina Forums, both in the city of
Rio de Janeiro, in Brazil. For this
purpose, we conducted interviews with the teams and performed unstructured
observations of the group sessions,
considering as categories of analysis the
infrastructure, the implementation process, and the service
methodology. The analysis was conclusive
in the sense of lack of
standardization in the service and lack
of training for professionals,
even though the two teams monitored
have shown full commitment to combating domestic and family violence.
Keywords: Maria da Penha Law, gender, public policy; Rio de Janeiro, reflective
groups.
1. Introdução[1]
A luta das mulheres para garantir a elaboração de políticas públicas de
combate à violência doméstica surtiu efeito: militância e poder público criaram
mecanismos para estimular mulheres a denunciarem seus agressores, como, por
exemplo, Juizados especializados para melhor atender a demandas específicas.
Mas e então? O que acontece após? A justiça para as vítimas não se esgota com
uma decisão judicial reconhecendo autoria e materialidade de um crime cometido
em contexto doméstico, familiar ou quando agressor e vítima possuem relação
íntima de afeto.
O serviço de responsabilização e educação para autores de violência não foi pensado
inicialmente enquanto instrumento de uma política pública de gênero, tendo surgido juntamente com os
Juizados Especiais Criminais (JECRIMs) em 1995.
Naquele momento, o instrumento recepcionava homens
que se haviam envolvido em diferentes contextos de violência, promovendo
encontros individuais e coletivos com o objetivo de forjar um espaço de troca
de experiência entre infratores (Paulo Lopes; Fabiana Leite, 2013: 69). Mas,
com a Lei Maria da Penha, o perfil de homens encaminhados passou a ser composto
por autores de violência doméstica e familiar contra mulheres.
A Lei Maria da Penha pode ser dividida em três eixos: aspecto
penal, medidas de proteção e medidas de prevenção/educação (Wânia
Pasinato, 2010). O serviço de responsabilização e
educação, enquadrado no último eixo, consiste em encontros onde são trabalhadas
temáticas de gênero, de forma a conscientizar os homens sobre a importância de
estabelecer uma relação não violenta com as mulheres. Nos artigos 35, inciso V
e 45, há previsão de desenvolvimento de trabalhos voltados para os homens. O
texto, porém, não descreve aspectos estruturais e
organizacionais, nem define precisamente termos como educação e reeducação,
faltando, assim, diretrizes básicas de implementação (Paulo Lopes; Fabiana
Leite, 2013; Vívian Zorzella;
Elisa Celmer, 2016).
Para além das omissões do texto, há problemas relacionados à implementação
do serviço: ele, teoricamente, deveria ser prestado por uma equipe
multidisciplinar, composta por profissionais das áreas psicossocial, jurídica e
de saúde (art. 29 da Lei Maria da Penha); contudo,
normalmente o trabalho é desenvolvido apenas por assistentes sociais e
psicólogos (José César Coimbra; Ursula Ricciardi; Lidia Levy, 2018).
Reconhecendo a vasta produção acadêmica já existente sobre a temática (Patricia Grossi; Maria de Fátima
Casanova; Michele Starosta, 2004; Paula Prates;
Leandro Andrade, 2013; Tales Mistura, 2015; Carla Silva, 2016; Isabela
Oliveira, 2016; Raíssa Nothaft;
Adriano Beiras, 2019; Karine Moreira; Renata Tomaz, 2020), o presente trabalho
inova ao pensar o serviço enquanto parte da implementação de uma política
pública de combate à violência contra a mulher e ao respaldar-se na perspectiva
da equipe. Para tanto, analisamos a infraestrutura dos locais de funcionamento
dos grupos, a implementação e a metodologia de atendimento.
A pesquisa de campo realizada precisou ser interrompida em razão da
pandemia de Covid-19, e, portanto, apresentamos aqui os resultados coletados
antes da implementação da Lei nº. 13.984/2020, que passou a prever o
encaminhamento de autores de violência para o serviço como requisito para a
concessão de medida protetiva de urgência, juntamente com as já previstas no art. 22 da Lei Maria da Penha, não mais apenas como
modalidade de suspensão condicional da pena.
O artigo segue estruturado da seguinte maneira: começamos pela descrição dos
objetivos e da metodologia da pesquisa utilizada para a análise dos grupos
reflexivos. Na sequência, relatamos os resultados obtidos no trabalho de campo
realizado nos Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
(JEVDFM) dos Fóruns Regionais de Campo Grande e Bangu
e do Fórum Regional da Leopoldina. Por fim, apresentamos nossas considerações
finais.
2. Objetivos e Metodologia
No Brasil alguns serviços foram
implementados após a criação dos Juizados Especiais, antes mesmo da Lei Maria da
Penha, porque a masculinidade violenta já era vista como um fator que
influenciava o cometimento de crimes e contravenções. Mas foi com a Lei Maria
da Penha que houve a padronização do perfil de homens encaminhados, fazendo com
que o serviço de responsabilização e educação componha a fase de implementação
da política pública de combate á desigualdade de gênero. Contudo, mas não há
literatura suficiente robusta sobre a atuação deles pela perspectiva da
política pública, de forma que esta pesquisa objetiva observar como o serviço
está sendo implementado no Rio de Janeiro. Ressaltando, ainda, que é através da
fase da avaliação da política pública, que poder-se-á mensurar se as medidas
adotadas estão sendo capazes de trazer proteção à mulher em situação de vítima
de violência doméstica e familiar.
Optamos por adotar uma metodologia de abordagem qualitativa, com o objetivo
de conhecer detalhadamente o processo de implementação do serviço de
responsabilidade e educação do homem agressor. O procedimento empírico consistiu
em observações diretas das sessões e entrevistas realizadas com a equipe que
ministrava o serviço nas Comarcas de Bangu e
Leopoldina, ambas situadas no município do Rio de Janeiro.
As perguntas foram semiestruturadas e abertas, divididas em quatro principais blocos de
questões: implementação, metodologia, avaliação do grupo reflexivo e impressões
profissionais. Quanto ao desenvolvido, uma das autoras do presente artigo
realizou uma entrevista em cada um dos Fóruns objeto da pesquisa, ocasião em
que entrevistou duas profissionais por equipe. No decorrer das entrevistas,
algumas perguntas foram modificadas e/ou incluídas, de forma a ter maior coesão
com a realidade que estava sendo descrita pelos profissionais. Ressalta-se, por
oportuno, que o termo “Entrevistada” está no feminino por se referir à pessoa
entrevistada. A opção pela nomenclatura no feminino não guarda,
necessariamente, relação direta ao gênero da pessoa entrevistada, tendo sido
apenas uma escolha para garantir o anonimato dos participantes.
Todas as entrevistas foram realizadas na sala da equipe técnica de cada
Tribunal. A duração média das entrevistas, tanto de Bangu,
quanto da Leopoldina, foi de 1h a 1h30m, somados o tempo de entrevista dos dois
profissionais de cada equipe. Antes do início, as entrevistadas receberam o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido além de informações sobre objetivos,
métodos e sigilo inerentes à pesquisa.
Em Bangu, a entrevista foi marcada por telefone e
a autorização foi dada diretamente pela equipe técnica. Ocorrido no dia 27 de
maio de 2019, o procedimento teve início apenas com a Entrevistada 1 e, no
curso da dinâmica, a Entrevistada 2 juntou-se a nós. Essa foi a estrutura
possível para atender a demanda da equipe. Já no Fórum Regional da Leopoldina,
a autorização foi dada por escrito pela Juíza titular do Juizado. As
entrevistas foram agendadas com a equipe técnica e realizadas no dia 11 de
junho de 2019. Também por uma questão de disponibilidade, a entrevista foi
feita separadamente com as Entrevistadas 3 e 4.
Paralelamente, realizamos a observação – que “envolve o olhar sistemático
sobre as ações das pessoas e o registro, análise de interpretação de seu
comportamento” (David E. Gray, 2012: 321) – da execução dos serviços para
agressores com o objetivo de analisar a atuação dos profissionais que ministram
os grupos, os aspectos da metodologia aplicada e a
estrutura do espaço disponibilizado para o desenvolvimento das atividades. A
opção pela observação direta, ou seja, sem a intervenção do observador, levou
em conta o caráter ressocializador e pedagógico do
grupo: a observação ativa demandaria conhecimento prévio sobre as dinâmicas
aplicadas e os seus objetivos, elementos que fogem ao conhecimento dos
pesquisadores, e poderia prejudicar o desenvolvimento dos homens naquele
espaço. Uma vez que o objetivo da pesquisa foi a análise da implementação da
política pública, a falta de interação direta com os agressores em nada
prejudicou seu desenvolvimento.
O grupo de Bangu foi observado em todos os seus
encontros, ocorridos em 5 de junho, 19 de junho e 3 de julho de 2019. Os
eventos aconteceram sempre às quartas, às 15h, e duraram por volta de duas
horas, com exceção do primeiro dia que, por ser apresentação e ter um número
reduzido de participantes, terminou em cerca de uma hora e meia. O grupo da
Leopoldina também foi observado em todos os seus encontros, ocorridos em 18 de
junho, 2 de julho, 16 de julho e 30 de julho de 2019. Os eventos aconteceram
sempre às terças, às 16h, e duraram também por volta de duas horas, mas o
último encontro, por ser um encerramento, não chegou a uma hora de duração.
3. II JEVDFM do Fórum Regional de Campo Grande e IV
JEVDFM do Fórum Regional de Bangu
O primeiro ponto observado nas Comarcas foi o espaço destinado para o
atendimento dos homens. Nas duas regiões, o serviço é prestado dentro do
próprio Fórum, espaço que acolhe todo o processo: atendimento junto à Defensoria Pública, cartório do juizado e realização das
audiências. Surgido entre 2015 e 2016, o serviço prestado pela equipe técnica
de Bangu, composta por uma psicóloga e uma assistente
social, atende também os casos acompanhados do Juizado de Campo Grande. A
Entrevistada 1 assinalou a dificuldade encontrada no início da implementação.
Segundo ela, nenhum treinamento que orientasse sobre os procedimentos a serem
adotados lhe foi dado. Como método de estudo, as profissionais começaram a
frequentar outros grupos já atuantes a fim de reproduzir no Juizado de Bangu um modelo que já funcionasse e que não fugisse às
regras.
No início, eram oito encontros semanais de duas horas cada e todo o
material utilizado havia sido colhido junto ao grupo da Comarca da Capital.
Após consolidar a réplica, as profissionais começaram a buscar materiais
próprios e foram modificando o conteúdo de acordo com a necessidade do Fórum
Regional de Bangu. Segundo a Entrevistada 1, a
magistrada titular tem convicção de que o grupo reflexivo é uma prática
produtiva e que, portanto, deve ser expandido para um maior número de homens.
Uma vez que a equipe técnica é composta por apenas duas profissionais, reduzir
o número de encontros para três foi a solução encontrada.
Assim, os encontros continuaram a ter duas horas de duração, porém,
passaram a ser quinzenais e o número de vagas oferecidas foi ampliado de dez
para 14. Cabe destacar que, nos encontros que acompanhamos, estiveram
presentes, respectivamente, dez, oito e 11 homens.
Outra mudança implementada foi que apenas homens sentenciados eram encaminhados
ao serviço, mas posteriormente, homens em cumprimento de medida protetiva
também passaram a ser recepcionados.[2]
Dos dois grupos que acontecem concomitantemente, um é composto apenas por
homens que estão em cumprimento de sentença, e o outro, que foi objeto de
observação, possui perfil híbrido, com homens em cumprimento de sentença e em
cumprimento de medida protetiva.
O objetivo de incluir homens que estão em cumprimento de medida protetiva é
intervir enquanto o homem ainda está com a companheira que foi vítima da
agressão, pois “se acredita que essa prática mais reflexiva, mais educativa,
que essa prática pode contribuir para uma redução dessa violência ou para
interrupção desse ciclo violento” (Entrevistada 2). A Entrevistada 2
ressaltou que essa foi uma sugestão dos próprios homens que eram encaminhados
ao grupo apenas após a sentença, pois eles entendiam que o tempo para uma
intervenção produtiva já tinha passado. Ressaltamos que o processo pode demorar
cerca de três anos até que a sentença saia, não considerando o tempo de
eventuais recursos. Segundo comentaram as entrevistadas, o entendimento tem
sido tentar prevenir novas agressões entre a medida protetiva e a sentença.
3.1. Metodologia de atendimento na Comarca de Bangu
A equipe de Bangu possui completa discricionariedade
sobre o conteúdo ministrado, não tendo ingerência apenas sobre a quantidade de
encontros, uma vez que o encurtamento foi determinação da magistrada. No
primeiro encontro, a equipe nos informou que costuma abordar o tema dos valores
morais, as mudanças em curso na sociedade, papeis atuais de homens e mulheres e
as transformações que o presente exige. Além disso, são discutidas questões de
legislação, como a Lei Maria da Penha. Naquele momento, não havia padronização
metodológica para o modelo de três encontros.
Também no primeiro encontro, a equipe tenta promover alguma dinâmica que
possibilite conhecer os participantes: quem são, o que lhes interessa e quais
necessidades trazem. Isso possibilita a adequação dos conteúdos à demanda dos
próprios homens:
“[…] nós tínhamos muitos homens
que já não estavam com suas companheiras e que a questão principal era a
indignação com a própria sentença. Era conhecer um pouco mais dessa legislação.
No segundo grupo, nós já temos um número muito significativo de homens que
continuam na relação com a companheira, com a namorada, que fez o registro da
ocorrência. E o que eles nos trazem como possibilidade e interesse é discutir
como é que levamos a diante. Como é que a gente continua o relacionamento com
esse ressentimento, com essa mágoa, com esses fatos tão fortes que aconteceram”
(Entrevistada 2).
No primeiro dia de observação, estiveram presentes dez homens. A equipe
apresentou-se e explicou as mudanças que estavam ocorrendo no perfil de recepcionados e na metodologia aplicada, de forma a
esclarecer aos homens em cumprimento de medida protetiva o porquê de eles
estarem ali. A elucidação é importante visto que, eventualmente, esses homens
sequer foram citados em ações penais, não tendo exercido seu direito de defesa
ou mesmo sido ouvidos pelo judiciário. A equipe foi taxativa ao informar que
nenhum relatório seria emitido sobre o grupo, de forma que a magistrada não
teria acesso ao teor das falas dos participantes. Uma vez que havia não
sentenciados no grupo, esse elemento é fundamental para que as falas dos homens
não possam servir como prova de cometimento dos crimes a eles imputados.
Antes de dar início às dinâmicas, a equipe apresentou a pesquisadora e
pediu autorização ao grupo para que ela acompanhasse os encontros. Após
explicado o objetivo da pesquisa, todos concordaram com a participação. Um dos
homens recusou-se a participar das dinâmicas, por entender injusto seu
encaminhamento ao grupo. A assistente social retirou-se do ambiente junto dele
para explicar que ele deveria procurar a Defensoria
Pública. Esse ato nos pareceu importante para que o sentimento de injustiça não
acabasse por contaminar os demais participantes.
A primeira dinâmica proposta foi a apresentação: os homens deveriam formar
duplas e as duplas teriam alguns minutos para se conhecer. Em seguida, ao invés
de apresentar a si próprio para o grupo, cada homem deveria apresentar sua
dupla. Além disso, cada integrante deveria pegar o crachá com o nome do colega
que estava pendurado por um fio no quadro branco. Esse exercício visou
estimular a escuta sobre o outro e verificar se os homens conseguiriam
apreender pelo menos o nome dos colegas com quem conversaram. Em que pese a
coerência da proposta com o objetivo do serviço, foi possível verificar que a
maioria dos homens apresentou muita dificuldade em falar sobre o outro,
desviando o assunto para falar sobre sua própria história.
Em seguida, a psicóloga informou aos participantes as regras do Tribunal e
do funcionamento do serviço e prosseguiu com a assinatura do termo de
compromisso. Então, cada homem recebeu um círculo verde, em que deveria anotar
o que gostaria que acontecesse no grupo, e um círculo vermelho, para anotar o
que não gostaria que acontecesse. A proposta era que eles criassem as próprias
regras, uma vez que não era a intenção da equipe tornar a atividade ainda mais
impositiva. Por fim, um homem foi escolhido para colher as respostas dos demais
e colocá-las no quadro branco. Nas respostas ao círculo verde, destacaram-se
expressões como “agir com a verdade” e a demanda por esclarecimentos jurídicos.
Então, a psicóloga explicou o contexto de surgimento da Lei Maria da Penha e a
necessidade de o poder público dar maior proteção às mulheres nesse cenário de
violência doméstica e familiar.
O segundo encontro teve como tema o ciclo de violência doméstica. Dos oito
homens participantes, apenas um tinha ouvido falar, mas não sabia o que era. A
equipe escreveu o ciclo no quadro branco: a fase da tensão, a explosão e a lua
de mel. A fase da tensão foi descrita como um momento relacionado a
expectativas frustradas, raiva, início do conflito, piadinhas, etc. A explosão
seria a fase da briga e da violência de fato. Por fim, quando as profissionais
iam exemplificar a fase da lua de mel, os próprios participantes concluíram que
era a da reconciliação.
A temática levou alguns dos participantes a falarem sobre sua insatisfação
com histórias pessoais pelas quais passaram e sobre como a Lei Maria da Penha
era aplicada, razão pela qual a equipe precisou explicar que a lei é geral, não
pessoal, não podendo, assim, ser pensada para cada detalhe da vida de cada um
dos participantes.
Ainda como parte da proposta de reflexão sobre o ciclo da violência, a
equipe pediu para que os participantes descrevessem os sinais que identificam
em si próprios quando estão na fase da explosão. A tendência foi que os homens
descrevessem o que as mulheres faziam para causar-lhes a explosão. A partir da
intervenção de uma das profissionais, um dos homens a questionou se ela era
casada. Ao responder que não, alguns dos participantes mostraram-se
desrespeitosos e descrentes em sua capacidade de falar sobre relacionamento,
uma vez que ela não vivia um.
Um dos participantes levantou uma questão sobre medida protetiva e
reconciliação, o que fez com que a equipe interrompesse a dinâmica para prestar
os esclarecimentos. Encerrada a etapa sobre o ciclo de violência, a equipe
passou um pote com perguntas para os homens. As perguntas sortearam foram:
- O que você faria se a sua companheira decidisse mudar todas as senhas dela
e não te comunicar?
- Como é para você não ter privacidade e não deixar que o outro tenha? (Esta
pergunta foi feita pela assistente social como forma de aprofundar a primeira
pergunta.)
- Qual postura você tomaria se visse a sua companheira olhando com olhar de
admiração outro homem na sua frente?
- O que você faria se a sua companheira passasse a chegar mais tarde em casa
que o normal?
- Alguém dá vale night[3] para a esposa? (Esta pergunta também foi feita pela assistente social para
aprofundar a pergunta anterior.)
- O que você faria se descobrisse que a sua mulher saiu para um bar sem te
avisar?
- O que você faria se a sua companheira não atendesse as suas últimas
ligações?
- O que você faria para sua esposa se ela dissesse que não vai mais cozinhar
porque ela não gosta?
A maioria dos participantes deu respostas socialmente aceitas, dando a
entender que um homem somente sentiria ciúmes se fosse inseguro. A participação
da equipe foi fundamental para chegar a reflexões e respostas mais profundas.
Um dos homens relacionou o ciúme a uma questão de classe, dizendo que ricos
viajam e saem sozinhos, mas que pobres não podem ir a um bar na esquina que é
motivo de briga e acrescentou que pobre não tem condições de pagar um analista
para discutir os conflitos que possui. Convém destacar que, visando costurar os
ensinamentos dos encontros do grupo, a equipe relacionou o estabelecimento de
regras realizado no encontro anterior com essa dinâmica, mostrando que, assim
como a equipe acordou regras com os homens, estes também podem estabelecer
regras diferenciadas dentro das suas relações. De modo geral, os participantes
mostraram-se mais à vontade e mais comunicativos, acreditamos que pelo fato de
a dinâmica permitir que eles falem mais sobre o que acham, tanto sobre si,
quanto sobre os comportamentos das mulheres.
Na primeira parte do terceiro e último encontro, foram tratados os tipos de
violência. Os participantes foram orientados a não naturalizarem o
comportamento que viam com os pais e amigos, não apenas contra mulheres, mas
contra todas as pessoas. Após falar da violência em contexto mais amplo, o foco
passou a ser a violência contra a mulher. Nesse ponto, um dos participantes
perguntou se a lei privilegia as mulheres em detrimento dos homens. As
profissionais da equipe responderam que não, porque os homens também podem
denunciar e ir atrás de seus direitos, ainda que não naquele local, e que as
mulheres precisam dessa proteção por causa do número maior de ocorrências.
Instigados a falar, os participantes insistiram em dar exemplos pessoais,
em vez de discutir conceitualmente as violências. Tal prática foi tolhida pela
integrante da equipe que, educadamente, orientou que aquele dia não era o
momento cabível para relatos pessoais. Em momento posterior, houve estímulo
explícito por parte da equipe para que os participantes descrevessem quando
foram agressivos, em detrimento das narrativas correntes de como as mulheres
foram agressivas. Houve muita dificuldade por parte dos homens em falar de si
como agressores, insistindo em se apresentarem como vítimas. A equipe, por sua
vez, ressaltou que o Juizado não poderia resolver os problemas sentimentais e
familiares, apenas os legais.
Na sala, foram disponibilizados cinco balões, cada um com um papel dentro
contendo o nome de um tipo de violência: psicológica, física, patrimonial,
moral e sexual. Os participantes foram separados em duplas. Cada dupla tinha
que pegar um balão e discutir entre si sobre aquela violência que sorteou.
Foram disponibilizados cerca de 10 minutos para os debates. Então, os
participantes falaram para o grupo o que achavam ser a violência que sua dupla
sorteou e, em seguida, a equipe apresentava o conceito legal daquela violência[4]
em um papel para que um dos integrantes da dupla lesse. A equipe tentou mostrar
para os homens que a lei não é injusta, ainda que algumas mulheres façam mau
uso dela. Em dado momento, os participantes demonstraram muita indignação com as
abordagens policiais. A equipe, por sua vez, mostrou que o atendimento nas
delegacias também não é bom para as mulheres.
No decorrer da dinâmica, dois dos homens que no primeiro encontro disseram
que queriam reatar suas relações com suas vítimas, agora falaram que não
queriam mais voltar, porque entenderam que estavam em relações violentas.
Quando falaram de violência sexual, um dos participantes chegou a mencionar
que, na novela, houve um caso de uma injusta acusação de estupro, o que é
importante para demonstrar como a veiculação midiática
de casos de violência são ilustrativas para os homens, mas que eles preferem
buscar exemplos que corroborem a visão que possuem de que a mulher é a culpada
e o homem, a vítima. Dando sequência, a equipe leu alguns casos concretos e
pediu para que os homens identificassem que tipo de violência constava na
história.
A segunda parte daquele encontro contou com a participação da estagiária da
Defensoria Pública. Os participantes fizeram muitas
perguntas acerca de prisão, medida protetiva, divórcio, patrimônio, união
estável e custas processuais. O serviço foi finalizado com a entrega de uma
cartilha[5].
4. VI JEVDFM do Fórum Regional da Leopoldina
Na Leopoldina, foram entrevistadas duas profissionais atuantes na equipe técnica,
ambas com formação em psicologia e atuando no grupo reflexivo há menos de um
ano, tendo em vista que o serviço teve início em 2018. Diferentemente de Bangu, na Comarca da Leopoldina apenas psicólogos ministram
as atividades e são desenvolvidos dois grupos, com duas metodologias
diferentes. A Entrevistada 3 esclareceu que nos últimos cinco anos já havia
interesse da equipe em realizar atividade de grupo, porém, não havia demanda do
juiz ou, quando havia, era uma demanda pontual não suficiente para formação de
um grupo. Contudo, nos últimos dois anos que antecederam a entrevista, o
entendimento do juiz atuante no Juizado mudou e a “[...] equipe começou a
receber uma quantidade considerável de determinações judiciais para realização
do grupo com os homens que foram condenados como sendo um dos requisitos lá do
SURSIS [da Suspensão Condicional da Pena]” (Entrevistada 3). Frente à
demanda do magistrado, a equipe buscou um levantamento bibliográfico por conta
própria, além do estabelecimento de diálogo com outros profissionais, não sendo
fornecido um treinamento formal.
Para o início da implementação, a equipe utilizou-se da experiência da psicóloga
cedida da área da saúde, que já desenvolvera atividades de grupo, ainda que não
no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher. Ficou, assim, ao
encargo dela a elaboração da primeira versão do trabalho de grupo, cujos
procedimentos e estrutura eram conversados e desenhados conjuntamente com a
equipe. Um debate interno importante foi acerca da quantidade de encontros, uma
vez que os profissionais tinham que achar um número adequado: “[...] se
fosse uma grande quantidade de encontros, isso ia impactar outras frentes de
trabalho da equipe. Então a gente optou por desenhar um grupo com quatro
encontros e que isso poderia ser revisto” (Entrevistada 3). Até o momento
da realização da pesquisa observacional, o modelo de quatro encontros era o praticado
em ambos os grupos atuantes.
4.1. Metodologia de atendimento na Comarca da
Leopoldina
No que tangencia a metodologia, a Entrevistada 3 informou que a Juíza
atuante naquele Juizado deixou a equipe bem à vontade para decidir o que seria
desenvolvido e aplicado nos grupos. O caminho escolhido foi fruto de uma
construção coletiva, diante do que os profissionais entenderam ser o viável. A
Entrevistada 3 mencionou que, em algum momento, o Tribunal de Justiça tentou
padronizar a metodologia dos grupos reflexivos, mas que ela não testemunhou
essa fase: “Olhando hoje, me parece que isso não teve uma eficácia
institucional, não teve treinamento, esse documento se perdeu [...] Mas eu não sei qual é a posição do Tribunal hoje”. As
Entrevistadas 3 e 4 informaram que, naquele Juizado, não é distribuída nenhuma
cartilha aos homens, diferentemente do que ocorre em Bangu.
Conforme informado pela Entrevistada 3, há dois grupos com metodologias
diferentes atuando no Juizado: um ministrado na parte da tarde e outro no turno
da manhã. O grupo da tarde é fechado, com uma média de participantes entre 15 a
20 pessoas. A Entrevistada 3 acredita que ele se baseia em dois pilares:
testemunhos e temas. Os temas sofreram algumas variações ao longo do tempo, “[...]
seja pelo levantamento bibliográfico, seja pela experiência profissional dentro
do grupo e fora, ela [a psicóloga] foi identificando como relevante na
discussão” (Entrevistada 3). A profissional deu como exemplo de temáticas a
agressividade, a ideia de gênero e o ciúme. A partir desses temas, a
profissional desenvolve métodos para trabalhá-los de forma lúdica, através de
jogos, atividades e, eventualmente, com alguma coisa mais dispositiva. “Mas
a ideia [...] é de que, a partir desse tema, os participantes possam falar da
sua relação como experiência daquilo que foi identificado como violência ou da
sua relação com aquele tema que foi trabalhado ou que está sendo trabalhado
naquele dia” (Entrevistada 3).
A Entrevistada 3 esclareceu que os encontros nos dois grupos são quinzenais
e, havendo duas faltas, o participante tem que recomeçar em um novo grupo. A
Entrevistada 4 definiu o grupo da tarde como “[...] fechado, quinzenal,
focado na metodologia de grupos reflexivos [...] e mais ou menos programado”.
O grupo não é totalmente programado, uma vez que já acontece há quase dois
anos, então alguns dos participantes respondem a mais de um processo. Assim,
após participarem do grupo uma vez, eles retornam ao grupo em momento posterior
por causa de outro processo. Esse é o motivo por que a profissional tem que
repensar as atividades propostas, com o fito de não ser algo repetitivo. Já a
Entrevistada 4 classificou as temáticas trabalhadas no grupo como semiabertas.
Isso porque “[...] às vezes aparecem coisas como: morreu alguém da família e
aí a gente volta para aquilo, mas no final a gente acaba fazendo alguma
atividade que tinha sido programada, nem que use aquela temática”
(Entrevistada 4).
A observação foi feita no grupo fechado. No primeiro dia, compareceram
cerca de 25 homens, todos já sentenciados. A profissional se apresentou e, em
seguida, a pesquisadora se apresentou. Dos homens presentes, aproximadamente
cinco deles não estavam iniciando o grupo naquele momento, mas sim repondo
falta. Naquele encontro, foi proposto que cada homem se apresentasse
individualmente e contasse o motivo pelo qual fora sentenciado. À medida que os
participantes narravam suas histórias, a psicóloga tecia comentários de forma a
contextualizar a prática do homem à violência contra a mulher. Esses
comentários mostraram-se relevantes, uma vez que muitos dos presentes não
enxergavam suas condutas como práticas violentas ou exageradas, mesmo
descrevendo-as com vocábulos como “briga”, “agressão”, “paulada” e “socos”.
A maioria dos participantes se demonstrou bastante à vontade para falar de
si e das suas histórias, bem como para interagir com as histórias dos demais,
especialmente quando os relatos culpabilizavam as mulheres. De modo geral, a
profissional permitiu a livre manifestação dos homens, não tolhendo risos e
falas que corroboravam narrativas contrárias às mulheres. Foi possível perceber
falas da psicóloga no sentido de reconhecer que algumas mulheres possuem
comportamento violento, mas que eles estavam ali para refletir sobre o que eles
fizeram – o que era bem recepcionado pelos
participantes. Somente quando as falas eram explicitamente misóginas a
intervenção passava a ser mais de orientação que de acolhimento, tal qual o uso
de expressões como “a mulher gostou de apanhar”.
Por se tratar de homens sentenciados e que, portanto, já passaram pelo
processo judicial e foram ouvidos pela magistrada, as dúvidas jurídicas
apareceram em número reduzido em comparação ao primeiro encontro do Fórum de Bangu. Quanto ao descontentamento, ele não era pautado em
dúvidas, mas sim na sensação de falha no julgamento. Alguns dos que respondiam
a mais de cinco processos chegaram a afirmar que a juíza daquele Fórum era mais
rígida que os demais, até pelo fato de terem que cumprir outras penas além do
grupo reflexivo, como o cumprimento de trabalho voluntário e o comparecimento
ao cartório.
Um dos participantes demonstrou um comportamento mais exacerbado, não
concordando com a condenação e chegando até mesmo a falar bastante alto com a
profissional que ministrava o grupo. Somente após ela informar que, caso
entendesse que o participante não tinha estrutura emocional para participar da
atividade, poderia informar à magistrada, o comportamento do homem começou a
ser mais moderado. Os homens que compareceram para suprir a falta a um dos
encontros de seu grupo originário não tinham a obrigação de fazer suas
apresentações pessoais, apenas a de ouvir a dos novos membros. Contudo, foi
possível observar que muitos intervieram nas histórias dos demais, inclusive
compartilhando experiências que tiveram no grupo que participaram.
O segundo dia costuma ser reservado para um debate acerca de machismo e
feminismo e, conforme dito pela profissional, são temas que sempre causam
confusão. A psicóloga acredita que a resistência a esses temas tenha origem nas
transformações que os papeis de gênero foram tendo ao longo da conquista de direito
pelas mulheres:
“Até porque, nenhum deles se acha
machista até você começar a falar em roupa, em alguns pontos [...] Eu acho que
os homens estão sem saber o lugar deles. Nós, mulheres, ganhamos um espaço e
deixamos eles assim [...] O que é ótimo! Mas eles não estão sabendo o seu
lugar, tanto em relação a pais, filhos [...]” (Entrevistada 4).
Apenas três homens estavam presentes no início das atividades, o que
proporcionou à profissional fazer uma abordagem mais individualizada,
perguntando como os homens estavam e como passaram esses 15 dias entre o
encontro anterior e aquele momento. Foi interessante observar que, ao serem
perguntados sobre como estão, os homens tentaram falar de situações fora do
contexto pelo qual foram encaminhados para o grupo. Tal abordagem deu uma
impressão de maior humanização dos participantes: naquele espaço, eles não
foram reduzidos à figura de agressor. Em que pese mais homens terem chegado, ao
final apenas sete compareceram. Uma vez que no
primeiro encontro lhes foi avisado que uma falta não lhes traria prejuízo, já
que ela poderia ser reposta, há de se refletir se tal benefício incentiva as
ausências.
Em um segundo momento, a equipe perguntou aos participantes o que era
machismo para eles. A maioria dos exemplos que foram mencionados era sobre como
o machismo era prejudicial para o homem, como por exemplo a recusa das
delegacias em registrar uma lesão corporal sofrida por um homem cuja agressora
tenha sido uma mulher. As respostas demonstraram a dificuldade dos
participantes em identificar como o machismo afeta as mulheres. Já ao falar
sobre feminismo, foi possível observar problemas na sua conceituação, uma vez
que os homens que quiseram falar sobre o tema demonstraram entender que
feminismo é o machismo praticado pelas mulheres contra os homens. Na visão
deles, a mulher quer igualdade para praticar os mesmos atos ruins que os
homens. Ou seja, para aqueles participantes, tanto o machismo, quanto o
feminismo são ruins para eles, que se veem como vítimas das duas condutas. Importante
ressaltar que o caso do jogador de futebol Neymar[6]
foi citado como forma de deslegitimar o feminismo e a palavra das mulheres. Em
que pese a profissional da equipe ter apresentado as conceituações de machismo
e feminismo, o último tendo sido definido como igualdade de direitos entre
homens e mulheres, os participantes não se mostraram receptivos.
Muitos deles demonstravam se sentir injustiçados por estarem cumprindo uma
pena. Foi possível observar também que alguns acreditam que há inocência na
prática de agressão quando há uma justificativa. A psicóloga teve que explicar
que, para a lei, uma vez que a pessoa agride a outra, ela não é inocente, ainda
que haja uma história anterior ao ato.
Após o debate, foi realizada uma dinâmica. A profissional colocou palavras
como família, tristeza, violência, ódio, esperança, decepção,
violência psíquica, morte, felicidade e infância em um envelope e pediu que os
homens as sorteassem. Os participantes puderam se expressar sobre outras
experiências que não estavam atreladas ao episódio de violência do processo.
Inclusive, espontaneamente, refletiram sobre a vivência em ambiente familiar
violento na infância e em outros momentos familiares que não envolviam as
parceiras amorosas. Antes, eram disponibilizadas apenas palavras diretamente
relacionadas ao tema da violência doméstica, mas houve uma reformulação para
incluir outros temas inerentes à vida cotidiana como “[...] morte, amizade,
esperança, medo, temas fundamentais. A gente tenta ir além da questão da
violência porque violência permeia a vida, a história, muitas vezes o passado.
A gente encontra na história regressa pais violentos, coisas assim”
(Entrevistada 4).
Nesse encontro, em comparação com o primeiro, foi possível observar que,
com menos participantes, pareceu mais viável aprofundar-se nas histórias
individuais e estimular de forma mais proveitosa a participação de homens com
perfil mais tímido e retraído.
No terceiro encontro, a Entrevistada 4 mencionou que os participantes
começam a falar sobre as mudanças e é proposta a dinâmica do papel amassado:
“Eu peço para eles
fazerem um desenho de alguma coisa que eles gostem muito; já detestam essa
história de fazer desenho. Aí eu digo que não vai ser levado em conta o estilo
do desenho e eu nem vou precisar ver o desenho se eles não quiserem. Aí no
final peço para eles olharem o desenho e amassarem o desenho e isso causa um
impacto e alguns não conseguem amassar o desenho. Essa mobiliza bastante. Aí a
gente fala das coisas amassadas que nunca mais vão voltar a ser as mesmas, mas
que a gente pode escrever outras histórias [...] Essa parte mobiliza bastante”
(Entrevistada 4).
Com a presença de 11 homens, a profissional começou perguntando como eles
estavam. Muitos dos participantes levantaram dúvidas sobre a reposição de
encontros perdidos e demonstraram revolta com o fato de faltas justificadas não
serem abonadas. Ultrapassadas as questões sobre o funcionamento do grupo, mais
uma vez os participantes demonstraram indignação com a obrigatoriedade dos
encontros. Em resposta, a responsável expressou-se no sentido de também desejar
a dispensa de quem ela acha que não vai aprender com o grupo, mas que ela não
pode fazer isso. Essa colocação foi feita no sentido de demonstrar que todos
possuem suas obrigações ali e que, já que estão todos obrigados, que os homens
possam aproveitar algo no grupo, nem que seja o exercício da fala.
Assim, foi iniciada a dinâmica do papel amassado, já descrita. Quando a
psicóloga pediu que amassassem o desenho, houve muita resistência por parte de
alguns dos homens. A profissional, então, falou que era para eles verem que
nada volta a ser igual após ser amassado, seja outra pessoa, sejam eles mesmos.
Alguns homens ficaram quietos e emocionados. Em seguida, a integrante da equipe
técnica pediu para que cada um dos homens dissesse o que desenhou e se o que
desenhou ficou amassado com a violência vivida. Esse momento de fala e reflexão
sobre o estado do desenho causou maior emoção naqueles homens que têm filhos.
Dentre as falas, surgiram questões relativas a racismo e homofobia,
especialmente sobre como o mundo está chato atualmente. Um dos participantes
chegou a falar que “é melhor bater em mulher que ser marido da Flordelis”[7].
Tal colocação, analisada em conjunto com a menção ao caso de Neymar no encontro anterior, demonstra como os casos midiáticos influenciam na percepção
da violência, ainda que os homens prefiram se voltar para os casos que
corroboram com práticas violentas contra as mulheres. Nesse mesmo sentido, um
participante comentou que hoje em dia não julga mais homens que matam mulheres,
porque o homem pode ter sido injustiçado como ele. Na ocasião, diversos outros
homens também demonstraram estar mais solidários a agressores depois de terem
passado pela experiência do processo.
Em um dado momento, um dos participantes perguntou para mim e para a
responsável por ministrar o grupo se nunca seguramos nossos maridos pela camisa
e os chacoalhamos sem paciência e gritando, apontando o dedo na cara deles. Ao
negarmos e dizermos que esse tipo de comportamento não é normal, ele perguntou
se era possível que só ele tenha se relacionado com “mulher maluca”. Alguns
homens demonstraram preocupação com a questão do histórico criminal e com seu
impacto negativo para conseguir emprego futuramente. Tal colocação demonstra
que a reflexão mais latente não parece ser sobre mudar a forma de se relacionar
com as mulheres, mas sim com os reflexos sociais de uma condenação.
O quarto e último encontro foi pensado para ser uma celebração da fase que
terminou. A profissional disse que muitos homens pedem encaminhamento para
tratamento psicológico, uma vez que o grupo não se propõe a ser
psicoterapêutico, mas sim reflexivo: “[...]eles [os participantes] se
queixam de não serem ouvidos, então eles têm esse momento. Assim eles podem
procurar outras alternativas que não sejam a violência. Isso que a gente busca,
esses outros caminhos” (Entrevistada 4).
Compareceram dez homens. Por razões médicas, o grupo foi ministrado por
outra integrante da equipe técnica. Ela perguntou o que os homens acharam do
grupo. Alguns participantes queriam voltar a falar do motivo de estarem ali,
mas a profissional foi firme em se manter no tema. Surgiu espontaneamente o
assunto feminicídio, ocasião em que alguns participantes disseram que acham que
os homens inocentes (como eles ali no grupo) estão pagando pelos que cometem
coisas mais graves. Tal colocação é um apontamento de que, mesmo no último
encontro, alguns homens saíram sem enxergar suas condutas como graves. Por fim,
foram distribuídos os formulários que serviriam de avaliação do grupo por parte
da equipe técnica do juízo. Foi observado que, mesmo sendo obrigatório, uma boa
parte dos homens não os respondeu integralmente.
Convém fazermos algumas considerações sobre o grupo realizado no período da
manhã. Ele é aberto, de forma que há um fluxo de entrada e saída de pessoas.
Isso porque os homens precisam cumprir quatro encontros em um determinado
período e, assim, as pessoas que iniciam o grupo não são as mesmas pessoas que
o finalizam, havendo mistura de participantes antigos com novos. A participação
tem sido de nove a 16 homens por encontro. A forma como o grupo é ministrado
também é aberta: são encontros quinzenais e a cada encontro se alterna quem
está direcionando o conteúdo. O primeiro encontro é com um membro da equipe
técnica, o seguinte é com um convidado, o terceiro volta a ser com o
profissional do Juizado e, por fim, é encerramento é conduzido por outro
convidado.
Os convidados, até o momento, foram “[...] representantes dos Alcoólicos
Anônimos, dos Narcóticos Anônimos, da Defensoria
Pública das Mulheres, [...], dos Neuróticos Anônimos”. Além disso, no
momento da entrevista, já estava estabelecido o contato entre a equipe e o
Centro de Valorização da Vida, que indicaria um representante para participar
de encontros futuros. Sobre a escolha dos convidados, a Entrevistada 3
esclareceu que o contato com esses representantes pode acarretar ganhos
objetivos, como, por exemplo, um participante que faz uso abusivo de álcool
aproveitar a aproximação com os alcoólicos anônimos para resolver essa questão
pontual. A Entrevistada 3 ressaltou, inclusive, que a questão do alcoolismo tem
permeado a violência doméstica e familiar contra a mulher, mas ratificou que
tais ganhos não são a principal intenção; o objetivo primordial é a própria
inserção do homem em um grupo, de forma a despertar um senso de pertencimento:
“O motivo principal é que, no
nosso contato anterior com essas irmandades, no caso, a gente vê que eles têm
uma experiência de retificação subjetiva, vamos dizer assim, a partir do
momento que eles se engajam na respectiva irmandade,
qualquer que tenha sido. Então toda a vida anterior muda. O modo como você fala
sobre essa experiência muda completamente a partir do momento que você
ingressa. É essa experiência que a gente quer transmitir [...] e a gente acha
que isso tem uma validade para além da questão do álcool, do narcótico. Ou
seja, diante de uma dificuldade, diante de uma experiência de desamparo, diante
de uma experiência de violência que outras vezes acompanhou a trajetória dessas
pessoas, tendo ou não relação com a violência doméstica e familiar. A partir de
um dado momento eles passam a se ver e ver a sua experiência de uma outra
maneira. [...] a gente acha que pode haver uma transmissão dessa situação”
(Entrevistada 3).
A Entrevistada 3 disse que, para esses encontros, não são definidos temas,
de forma que, nos dias em que o grupo é ministrado pela equipe técnica, o
primeiro objetivo é transmitir a ideia de cuidado, mostrando que os
profissionais estão ali para ouvir as histórias dos participantes. Segundo a
profissional relatou, não apenas na sua experiência pessoal, mas também em
diálogo com colegas de outros juizados, que os homens chegam “[...] querendo
falar sobre o que aconteceu, fazer uma retificação, dizer que não foi bem
assim, que não foi ouvido [...]” (Entrevistada 3). Assim, a ideia de
cuidado é posta em prática através da oitiva das histórias pessoais, uma vez
que a história de um pode fazer com que outro participante se identifique e
coloque a mesma situação em outra perspectiva. A importância disso reside no
fato de que muitos agressores se enxergam como vítimas:
“Numa perspectiva não legal,
talvez caiba entender que eles são vítimas, mas a questão é que eles ficam
fixados nessa ideia, não tem nenhum deslocamento; mas para outros existe um
certo deslocamento, existe um esvaziamento, é muito evidente isso. Às vezes, os
caras participam lá do primeiro, segundo, terceiro, quarto encontro e aí falam:
“É, mas se a gente está aqui, no final das contas, é porque a gente fez alguma
coisa [...]”. A gente acha que esse primeiro passo: “Ah, eu fiz alguma coisa”
ou “de alguma maneira eu contribui para isso que aconteceu [...]”. A gente
precisa mostrar pra eles que a gente está disposto a
ouvir, que a gente está disposto a cuidar.” (Entrevistada 3)
O comportamento de se vitimizar foi
largamente constatado nos grupos observados. Os profissionais das equipes apresentaram
até mesmo dificuldade em trabalhar as dinâmicas propostas, porque os homens têm
a tendência a monopolizar as pautas para voltar a falar da situação de
violência que motivou o processo, sempre na perspectiva de se isentar da
responsabilidade. Há muita resistência e dificuldade por parte dos
participantes de se pensar e pensar a relação afetiva de maneira mais ampla.
Ressalta-se que o primeiro contato do condenado com os profissionais da
Equipe Técnica do Juizado de Leopoldina é na entrevista de encaminhamento,
ocasião em que a equipe os direciona, tanto para o grupo, quanto para a
prestação de serviço à comunidade. Por vezes, já decorreram de dois a três anos
entre o fato e essa entrevista, em razão dos recursos processuais que vão sendo
interpostos e retardam o cumprimento de sentença. Cabe ressaltar que o grande
decurso temporal entre o fato e o cumprimento de sentença também foi observado
no Juizado de Bangu, tendo sido, inclusive, o motivo
pelo qual aquele Juizado passou a fazer grupos reflexivos ainda na fase da
medida protetiva. A intenção foi aproximar o momento da realização do grupo ao
fato delitivo para melhor prevenir reincidência, uma
vez que o agressor não recebe nenhuma orientação ou trabalho que possa
proporcionar mudanças relacionais durante o período de tramitação do processo.
Resta, assim, apenas o ressentimento por estar respondendo a um processo
criminal, em que muitas vezes o agressor não entende sua conduta como uma
agressão e se sente injustiçado.
5. Considerações Finais
A falta de articulação na implementação de política pública na pauta de
violência doméstica no Brasil é uma situação notória (Carla Penafort,
Terezinha Mafioletti, Aida Maris Peres, 2019). No
caso do serviço de responsabilização e educação para agressores, foi
encontramos cenário semelhante, a começar pela falta de treinamento por parte
dos Tribunal de Justiça. A implementação só foi possível graças ao empenho dos
profissionais na busca pelo saber e na troca com outros profissionais que já
estavam pondo em prática os grupos.
Um dos reflexos da ausência de treinamento, ou de uma orientação
minimamente unificada do Tribunal de Justiça, é a falta de padronização na
metodologia de atendimento. O grupo de Bangu
originalmente tinha oito encontros e diminuiu para três com o fito de atender a
alta demanda pelo serviço, enquanto os dois grupos da Leopoldina funcionam com
quatro encontros, também para conseguir abarcar a realidade local. Nos dois
fóruns, a equipe técnica não trabalha exclusivamente para a implementação dos
grupos, sendo essa apenas mais uma das funções que realizam em meio a outras
tarefas, como a elaboração de estudo psicossocial dos casos judiciais.
Quanto aos temas levantados pelas equipes nos encontros, os dois grupos
utilizaram-se de dinâmicas mais lúdicas para introduzir temáticas de muita
relevância nos estudos de gênero como feminismo, violência e legislação.
Contudo, uma sugestão que se mostra relevante é observar a possível baixa
escolaridade dos homens que participam dos grupos, tendo em vista que isso
impacta na forma como eles assimilam os temas e se relacionam com o mundo. Por
exemplo, no grupo de Bangu, os homens pareceram não
entender as definições apresentadas pela equipe sobre os tipos de violência,
uma vez que lhes foi oferecida como explicação a definição adotada pela lei,
com linguagem mais rebuscada. Na Leopoldina, os homens utilizavam de exemplos
tirados de novelas e casos midiáticos para se
expressarem, fazendo uso de recursos da cultura popular para exteriorizar suas
insatisfações com as mulheres.
No que se refere aos critérios de encaminhamento dos homens aos grupos, Bangu mostrou-se vanguardista, tendo em vista que antes
mesmo da aprovação da Lei nº. 13.984/20,
já aceitava homens em cumprimento de medida protetiva. Essa inovação foi
adotada porque, conforme informação colhida na entrevista, a magistrada daquela
Comarca queria agir em um momento processual mais próximo do cometimento da
violência e onde havia maior probabilidade de o homem ainda estar se
relacionando afetivamente com a mulher que o denunciou. Leopoldina, por sua
vez, apenas aceitava homens já sentenciados. De fato, essa diferença teve
impacto notório no perfil dos homens: em Bangu, a
maioria estava casado ou vivia em união estável, enquanto na Leopoldina, a
maioria era composta por homens solteiros ou divorciados.
A inclusão de homens em cumprimento de medida protetiva apresentou uma
dificuldade: o fato de que esses homens ainda não foram ouvidos e às vezes
sequer têm advogado ou procuraram a Defensoria
Pública. Por conta disso, eles pareciam não entender os motivos judiciais de
serem encaminhados para o grupo reflexivo, o que consumiu muito tempo com
demasiadas dúvidas de cunho jurídico. Assim, o grupo poderia ser mais
proveitoso se esses homens tivessem recebido orientações jurídicas previamente,
para demarcar que os encontros não seriam destinados a isso. As dúvidas
jurídicas também se fizeram presentes no grupo da Leopoldina, mas em menor
quantidade e mais em tom de descontentamento que falta de informação.
A conclusão a que se chega neste trabalho é que, até o momento, não é
possível apurar quantos dos processos possuem como fim o encaminhamento do
agressor aos grupos como substituição de pena privativa de liberdade nem se
essa medida tem algum impacto na diminuição da violência, por falta de
critérios de avaliação. E isso, para nós, enquanto militantes pelo direito das
mulheres, é bastante frustrante. Há um esforço para que as mulheres vítimas de
violência denunciem seus agressores, as que o fazem passam pelo doloroso
processo judicial e, quando conseguem a sentença favorável, os homens
participam de três ou quatro encontros, que não ocupam nem dois meses, e estão
livres. As equipes estão muito empenhadas com o combate à violência contra a
mulher, mas elas também estão sobrecarregadas e sem apoio para uma
implementação de forma institucionalizada com critérios efetivos de avaliação.
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[1] Essa pesquisa teve
financiamento da Fundação
Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro - FAPERJ e da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
[2] A equipe de Bangu já
estava trabalhando com o encaminhamento dos homens em cumprimento
de medida protetiva mesmo
antes da aprovação da Lei
n. 13.984/2020.
[3] “Vale night” é uma expressão
brasileira que se refere à “permissão”
obtida por algum dos
integrantes do casal para poder sair à noite para divertir-se sem o companheiro ou companheira. A expressão inclui a noção de política social
de concessão de vale-transporte, vale-alimentação, etc.
[4] Tais conceitos estão previstos no art. 7º da Lei
Maria da Penha.
[5] A cartilha
está disponível no site: http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/3480102/cartilha-maria-penha.pdf [25/05/2020].
[6] Na época desse
encontro, o jogador de futebol Neymar da Silva Santos Júnior havia
sido denunciado por estupro pela modelo Najila Trindade, contudo
a modelo acabou sendo
indiciada por denunciação caluniosa.
O caso foi amplamente
divulgado pela mídia e utilizado para diminuir a luta das mulheres contra abusos sexuais, ensejando, inclusive, o Projeto de Lei denominado “Neymar
da Penha”, cuja proposta é aumentar a pena para os
casos de acusações inverídicas
de estupro.
[7] No dia 16 de junho de 2019 o pastor Anderson do Carmo foi morto na porta de casa. Na época, a sua esposa, a
deputada federal Flordelis dos Santos de Souza disse
que foi latrocínio, contudo, com o avançar das investigações alguns filhos do casal chegaram a ser presos e ainda hoje se investiga se a deputada teve
envolvimento com o assassinato do marido. O caso foi
amplamente divulgado pela mídia, em
razão do cargo político ocupado por Flordelis.