Maternidade como construção
sócio-histórica
Maternity as a historical
socialconstruction
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Wéllia Pimentel Santos |
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Universidade de Salamanca – España |
Recibido: 06-09-2022
Aceptado: 24-05-2023
A pesquisa em
foco reflete a concepção de maternidade
a partir da construção social veiculada
ao instinto inato a todas as mulheres. Assim, foi realizada uma varredura na literatura de
modo a construir discussões expressas
pelas categorias desenvolvidas
pelo feminismo materialista francês à luz da produção/reprodução social da existência proposta por Christine
Delphy, bem como realizou-se uma pesquisa de natureza teórico-conceitual, a
partir de análises das categorias:
patriarcado, divisão sexual do trabalho,
constructo social, cultural da maternidade, familismo tendo como autoras centrais: Badinter, Biroli, Pinto, Campos. Dentre os
resultados mais significativos da pesquisa evidenciou-se como se sedimentam
os estereótipos de gênero
que compreendem a mulher enquanto mãe, restrita
ao ambiente doméstico, privado enquanto
o homem pertencente à
esfera pública.
Palavras-chave: mulher, maternidade, sociedade, cultura.
Abstract
The research in focus reflects the conception of motherhood from the social construction conveyed to the innate instinct of all women. Thus,
a survey of the literature was carried out in order to build discussions expressed by the categories
developed by French materialist feminism in the light of the social production/reproduction of existence proposed by Christine Delphy, as well as a theoretical-conceptual research, based on analysis of the categories: patriarchy, sexual division of
labor, social, cultural construct of motherhood, familism having as central authors: Badinter, Biroli, Pinto, Campos. Among the most
significant results of the research, it
was evident how the gender
stereotypes that understand the woman as mother, restricted to the domestic environment, and private while the
man belongs to the public sphere.
Keywords: woman, maternity, society, culture.
1. Introdução
As pessoas são um
conjunto de relações, somos atravessados
pela história, pela sociedade,
temos imaginários quem se expressam sejam
por ideologias, símbolos, utopias,
e também por alegorias, rituais, mitos. O teórico prussianoKarl Marx diz que somos produtos das estruturas sociais, do progresso histórico.
Como esteio do materialismo histórico-dialético, Marx afirma que “não é
a consciência dos homens
que determina o seu ser, mas, ao
contrário, é o seu ser
social que determina sua consciência”
(Marx, 1974:136).
Nesses preceitos, Marx (1974) compreende
a constituição do ser social a partir da compreensão da categoria trabalho como fundante do ser social, e para além do trabalho, as demais formas de práxis, como a práxis educativa e a práxis
política. O trabalho e as demais
formas de práxis vão se
particularizar na especificidade histórica da sociedade capitalista onde esses processos da vida social se
encontram majoritariamente
subsumidos a um processo de
alienação e de exploração.
Os seres
humanos são verdadeiramente
complexos porque são compostos
por uma parte biológica que de alguma
forma os faz ser, e outras partes, como diriam os antropólogos, são animais racionais. São entidades sociais, dependentes do momento
histórico em construção,
fruto do lugar em que nascemos. Tudo
isso vai moldar o que seria
a parte psicológica, mental, de como os seres humanos se projetam
e como vão dar sentido ao corpo, à mente, à sociedade em que todos fazem parte e serelacionam. Os seres humanos são,
então, o resultado de todos esses
componentes, e devido a isso,
cada indivíduo é parte de uma
construção histórico-social e
cultural.
Isso nos remete a um mito sobre o conceito de maternidade, ao qual se resume em três falácias: a primeira é que todas as mulheres querem ser mães; a segunda é que
todas as mães precisam de suas filhas/filhos,
e a terceira é que todas as filhas/filhos precisam de suas mães, o que implica que a maternidade exige atenção
exclusiva da mãe à sua família e, portanto, a mulher experimenta um autossacrifício para poder se dedicar integralmente aos filhos, sendo
as pessoas que violam esses padrões consideradas
desviantes ou deficientes.Considerando esses pressupostos,
este artigo se propõe a refletir
sobre a maternidade como um
constructo histórico-social,com base no seguinte questionamento: as mulheres nascem determinadas biologicamente para a maternidade?
Isso porque, apesar
das sociedades atuais afirmarem
que é legitima a decisão individual de muitas mulheres não serem mães,
na realidade, a dinâmica diária não aceita isso com naturalidade,
o que as diferencia dos homens que não precisam da paternidade para se completar como pessoa,
estas dependem da identidade
materna para suas realizações.
Entretanto, parte-se do pressuposto de que a maternidade não se refere apenas ao aspecto
biológico, mas sim à construção simbólica tanto da mulher quanto da mãe, e isso significa que a maternidade é, entre outras coisas, um fato cultural.
As ciências sociais e humanas nos têm mostrado que os assuntos que
por vezes são os mais cotidianos, os mais próximos
da nossa experiência vital podem ser observados como objetos de estudos,
como objetos científicos, e ao fazer
esse exercício, que também é propiciado pelos estudos
feministas, vamos ‘desnaturalizando’ aquelas
realidades que por cotidiana, às vezes
damos por natural. Portanto, a proposta
de converter a maternidade
por objeto de estudo vai passar por desnaturalizar a maternidade
(singular) por maternidades (no plural).
1.1. Objetivos e metodologia
A pesquisa em
foco tem como objetivo refletir a concepção
de maternidade a partir de uma construção social veiculada ao instinto inato a todas as mulheres. Para tanto, foi
realizada uma varredura na
literatura pertinente a temática de modo a construir discussões
expressas pelas categorias desenvolvidas pelo feminismo materialista francês à luz da produção/reprodução social da existência proposta por Christine Delphy
(2015), bem como, de modo a estabelecer
uma perspectiva histórica, social sobre a temática em foco realizou-se uma pesquisa de natureza teórico-conceitual, a partir de análises
das categorias: patriarcado, divisão
sexual do trabalho, constructo social, cultural da maternidade, familismo tendo como autoras centrais: Badinter,
(2003; 1985; 2011), Biroli (2016), Pinto (2003),
Campos (2015).
2. Desenvolvimento
2.1. Breve contextualização histórica sobre as mulheres
em diferentes sociedades
Ao refletir
historicamente o papel da mulher
em diferentes sociedades tem-se
que na História Antiga, com a fixação das pessoas em centros urbanos e aldeias ampliou-se o domínio masculino sobre as mulheres.
Os homens tornaram-se os principais responsáveis pelas plantações, embora as mulheres e as crianças também trabalhassem nessa atividade.
Considerando-se
que a maternidade consumia
tempo, os homens assumiram funções de comando, o que levou às mulheres a passar
a ter suas vidas definidas pela gravidez e pelo cuidado das crianças. Essa se tornou uma característica das chamadas sociedades patriarcais em que os homens eram considerados
superiores e em geral tinham direitos
que às mulheres eram negados. Conforme destaca Pinto (2003), a desigualdade entre homens e mulheres marcou muitas sociedades antigas. Nas sociedades patriarcais, as mulheres tinham poucas condições de protesto, embora algumas pudessem obter certa influência sobre o seu marido e filhos ou sobre as mulheres sob seu domínio
no ambiente doméstico.
Durante séculos perdurou a imagem da mulher em condições equivalentes às de escravo, numa época em que ser livre significava basicamente ser homem. As funções primordiais femininas eram a reprodução, amamentação e a criação dos filhos. O filósofo grego Aristóteles (2005) explica que a submissão
das mulheres aos homens deu-se pela superioridade da autoridade
masculina diante das vontades
do casal, bem como da necessidade
de as mulheres se guardarem
no interior da família, cumprindo
o papel de mãe e dando educação
aos filhos. Segundo ele, as mulheres não poderiam conduzir
seus desejos e as relações com os outros, pois quem
cumpria o papel de sobrepujá-las
eram os homens.
Foi somente
no final do período medieval que as mulheres passaram assumir alguns papéis no desenvolvimento econômico das cidades. Surgiu um novo
modelo de relação de trabalho,
tendo em vista o alto crescimento da economia urbana. Neste contexto, as mulheres passaram a ser inseridas num espaço que visavam intercalar trabalho e cotidiano, no qual através do casamento o homem e a mulher formavam o núcleo da atividade econômica.
Por mais que essa porta tenha sido aberta e tenha surgido a possibilidade de
as mulheres alcançarem independência social e profissional
ainda havia conflitos com os ditames impostos pela economia, pela política e pela mentalidade. Isso permanência de tal forma que a formação
da mulher se voltada para a
área da família e da economia
doméstica, não havendo a possibilidade de terem uma formação profissional
ou científica.
No
período renascentista, entre os séculos
XIV e XVI, o trabalho feminino
era depreciado. As mulheres que trabalhavam
eram desvalorizadas, mas nem
por isso deixaram de exercer suas atividades,
pois as necessidades materiais de sobrevivência exigiam que assim o fosse. Essa desvalorização
acarretava o recebimento de
remuneração inferior à dos homens
e, consequentemente, havia exploração da mão de obra feminina para que houvesse maior acúmulo de capital (Pinto, 2003).
No
contexto da Revolução Francesa, inspirada
nos ideais iluministas, e motivada pela situação de crise que a França vivia no final do século XVIII, as mulheres insatisfeitas
com a sua situação tentaram conquistar a mesma liberdade dada aos homens. A ativista política e feminista Olympe de Gouges,
indignada com a sujeição
das mulheres à sociedade
machista propôs a Declaração
dos Direitos da Mulher
(1791), comparável a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, pretendendo assim acabar com os privilégios dos homens. Este foi o grande marco da luta feminina pela igualdade. Todavia, Olympe foi sentenciada à morte e guilhotinada em 1739, sob a acusação de ter deixado de lado os benefícios do seu gênero (Badinter, 2003).
As mulheres francesas não desistiram, e continuaram a lutar, e dentre algumas das vitórias alcançadas estava o direito de voto, que passou a receber também o apoio dos católicos. É nesse
período da história que o feminismo ganha força e passa
a ser visto como uma ação
política organizada cujo objetivo era reivindicar os direitos de cidadãos diante das barreiras que lhes colocavam. Esse movimento passa por um discurso voltado para luta das mulheres.
Na Inglaterra, o movimento feminista foi marcado
por muitas críticas, levando pensadores como Jean-Jacques
Rousseau (1999) a acreditar que o homem pertence ao mundo externo e as mulheres ao interno, devendo estas sempre estar a serviço dos homens. Alguns filósofos contestaram tal afirmação, considerando a existência
de diferenças naturais
entre os sexos, tanto de caráter quanto
relacionadas à inteligência. A suposta
inferioridade da mulher se dava pela sua falta de acesso à educação, propondo-se então que as mulheres passassem a ter as mesmas oportunidades de formação
intelectual, bem como a de desenvolver-se fisicamente igual aos homens.
É fundamental explicitar que o conceito de maternidade surge
principalmente no século XIX e considera a mulher como o ‘centro’ do lar, assim,
como a responsável pelo bem-estar
dos filhos e da família. Friedrich origem da família, da propriedade privada e do Estado (2006), considera
que a desigualdade entre homens e mulheres na forma como
se manifestava neste
contexto, surge a partir da ideia de propriedade privada e da expansão
da variedade de trabalhos
domésticos. Como a esfera pública era dominada por homens
burgueses, estes podiam
aumentar seu poder econômico,
mas tinham um interesse importante, que sua
fortuna fosse herdada por um filho legítimo do sexo
masculino. Para isso, precisavam
que a estrutura familiar fosse
patriarcal, heterossexual e monogâmica,
pelo menos na aparência, e como tinham
o poder que o sistema capitalista lhes dava, era muito fácil ajustar o
modelo de família ideal de forma que beneficiasse a seus interesses.
O teórico
prussiano destaca que o casamento
era então constituído por uma relação de propriedade. E sendo muito comum a existência
de famílias numerosas, quanto
maior o número de filhos
que a mulher tinha, mais ela ficava
presa ao papel que lhe fora imposto (Engels, 2006). Foi assim que a relação de marido ou mulher adquiriu
uma dimensão laboral de trabalho não reconhecido,
na qual, de certa forma, o trabalho da mulher era
potencialmente ilimitado, ou seja,
não havia salário, limite de tempo ou benefícios.
A
socióloga Christine Delphy (2015), uma das primeiras
a aplicar conceitos marxistas à análise
feminista, tornando-se referência para estudos posteriores, analisa como
a sociedade dominada pelo capitalismo e pelo patriarcado afetou o casamento e o transformou em um método para preservar as estruturas sociais existentes,
principalmente aquelas influenciadas pelo machismo da
época. No caso do casamento, junto com a ideia de maternidade, fica evidente que de
alguma forma as meninas são
estimuladas a desejá-lo, seja
por meio de filmes, histórias,
brinquedos e outros meios culturais. Como argumenta a
pensadora, isso em si não é ruim, o problema é que essas ideias estavam
intimamente ligadas ao
papel de prestatividade e subalternidade
ao marido.
No caso
do homem, dificilmente ele foi estimulado a idealizar o casamento.
Os homens foram historicamente educados para ter sucesso
como pessoa, o que implica numa
desvantagem; se o marido aprendeu
a pensar em si e no seu desenvolvimento e a esposa aprendeu
a servir a família, é quase
inevitável que a relação seja injusta. E ainda que os cônjuges pudessem se amar de verdade, isso não
impedia que a exploração ocorresse, principalmente quando
era tão normalizada. A esposa podia
gostar ou ter aptidão para certas atividades, mas ainda espera-se muito dela em
condições que podem facilmente se transformar em opressão (Delphy, 2015). Em outras palavras, o casamento se tornou uma institucionalização do trabalho feminino, pois na medida em que a mulher decidisse trabalhar fora, ainda se considerava que ela deveria assumir
integralmente os cuidados com a família
e a casa, tornando sua responsabilidade
ainda mais pesada.
Outro aspecto a ser considerado é que mesmo as mulheres solteiras acabavam trabalhando dessa forma, sendo comum que pais e irmãos se apropriassem de seu trabalho.
Obviamente, este sistema se aplicava, sobretudo, às famílias
de classe média baixa, já que na classe alta a maioria das mulheres dispunha de criados, o
que pressupõe formas diferenciadas de submissão. Logo, o sistema capitalista patriarcal evidenciava a importância na divisão dos sexos, enfatizando como deveria
ser preservados comportamentos de homem
e mulher, bem como a forma
que deveriam se relacionar para que o sistema se mantivesse estável.
Para Marx (1974) em
qualquer momento da história
da humanidade o setor que
controla a produção econômica
e as relações de trabalho é
também o setor que controla
as formas de pensamento, que inclui
desde as teorias até as formas de se explicar o
mundo, e as ideias que pairam
a cabeça dos indivíduos.
Nesse sentido, podemos apreender que hoje o machismo, o
racismo, e a LGBTfobia são tão fortes ainda
em diversas sociedades ocidentais
porque o setor que controla a economia
é majoritariamente constituído
de homens, brancos, cuja orientação sexual é majoritariamente
heterossexual. Não é uma coincidência o fato de que a produção esteja nas mãos de uma
maioria branca, masculina e hétero
que faz com que ideias como
o racismo, o machismo e aLGBTfobia sejam disseminadas. Mas sim para manter os seus privilégios.
2.2. Movimentos feministas e avanços
do lugar da mulher na sociedade
Uma das principais
mudanças da sociedade ao longo do século XX, no período
das duas grandes guerras, referiu-se
ao lugar da mulher na sociedade. Isso porque, de alguma maneira a mulher foi também
demandada a adentrar no mercado de trabalho, seja porque o homem tenha sidochamado a prestar serviço em defesa de sua pátria, morreu nos campos de batalha
ou talvez devido ao fato de que a própria máquina
de guerra acabou demandando uma
maior produção em vários sentidos, levando com que as mulheres, além de cuidarem de seus afazeres particulares, começassem
a acumular as responsabilidades de toda uma comunidade.
Nestes termos, de alguma
maneira, as duas grandes
guerras mundiais produziram
no século XX, na sociedade ocidental, um profundo questionamento de todas as instituições, a partir daquilo
que se chama de ‘civilização’. Depois
da guerra, ou a partir das duas
guerras houve uma crise das instituições sociais que foram profundamente questionadas, com o Movimento de Maio de 1968, os movimentos da contracultura. Este novo paradigma de políticas impôs
um novo olhar
sobre as políticas sociais, sobre as universidades, inclusive sobre a família,
que de alguma maneira entrou em crise,
passando a serem questionados seus arranjos, suas hierarquias internas.
Sobre o
impacto do capitalismo moderno na vida das mulheres, Helena Hirata (2001), em
sua obra Globalização e divisão sexual do trabalho explicita
comoconsequência do capitalismo globalizadotem-se
a divisão sexual do trabalho
e as transformações no trabalho
e emprego das mulheres.
Biroli (2016) complementa
que essa divisão sexual do trabalho parte da ideia de que os
homens exercem um tipo de trabalho e as mulheres outro tipo. No primeiro momento a impressão que dá é de que os dois trabalhos se complementam. No entanto, os homens ficam com o trabalho
produtivo (público) e às mulheres é destinado o trabalho reprodutivo, isto é, elas são destinadas à esfera
privada, a esfera do cuidado, da reprodução, da
comida. Conforme a autora, isso não
é complementar porque o trabalho dos homens tende a ser muito mais valorizado, inclusive
socialmente porque são os homens
que estão majoritariamente
inseridos nos trabalhos e serviços
políticos, militares, portanto, tudo
aquilo que é extremamente valorizado dentro da nossa sociedade, ao passo que o trabalho doméstico será extremamente desvalorizado. Basta
pensar que economicamente ele não
tem nenhuma função. Ele não é valorizado economicamente. As mulheres não ganham porque trabalham em casa.
Então o que ocorre não é uma
divisão sexual complementar, é uma
divisão sexual que leva em consideração uma ordem de gênero, ou seja, como se houvesse uma natureza
feminina e uma natureza masculina e cada qual tivesse habilidade
para funções diferentes e ao
mesmo tempo, além de levar em consideração dentro dessa divisão sexual que também existe uma hierarquização desse trabalho, e, outros termos, o trabalho masculino será sempre mais valorizado do que o trabalho
feminino (Biroli, 2016).
No caso
do Brasil, é preciso sempre lembrar
que a entrada da mulher no mercado de trabalho trata-se de um fenômeno principalmente relacionado às
classes médias urbanas, haja vista que a mulher pobre sempre trabalhou nos meios rurais, maiormente
como empregadas domésticas, grande parte em trabalhos precários,
sem uma formalidade
ou garantias ligadas à regularização do trabalho formal.
E também porque de alguma maneira, muitas vezes, em muitas
famílias brasileiras pobres, a mulher
se tornou chefe de família, quer dizer,
não teve um companheiro, um marido ou um
pai com maior
estabilidade presente. Obviamente, isso não é a totalidade
dos casos, mas é bastante frequente até na atualidade (Rago, 1997).
Com a implementação
das fábricas e com o desenvolvimento
da tecnologia as mulheres passaram a trabalhar dentro do setor fabril em atividades compatíveis às que existiam dentro de casa, com condições degradantes e como remuneração sempre inferior à dos homens. Uma das justificativas para tal diferença
era a de que não havia necessidade de as mulheres ganharem mais que os homens, pois elas
tinham quem as sustentassem, no caso eles próprios.
Segundo Rago:
“As barreiras enfrentadas pelas mulheres para participar do mundo dos negócios
eram sempre muito grandes, independentemente
da classe social a que pertencessem.
Da variação salarial à intimidação
física, da desqualificação intelectual ao assedio sexual, elas tiveram sempre
de lutar contra inúmeros obstáculos para ingressar em um
campo definido – pelos homens – como naturalmente
masculino. Esses obstáculos não
se limitavam ao processo de produção; começavam pela própria hostilidade com que o trabalho feminino fora do lar era tratado no interior da família.
Os pais desejavam que as filhas encontrassem um bom partido para casar e assegurar o futuro, e isso batia de frente com as aspirações de trabalhar fora e obter êxito
em suas profissões”
(Rago, 1997: 581-582).
E até hoje isso reverbera nas sociedades contemporâneas, onde é evidenciado pelas estatísticas
que o salário da mulher tende a ser significativamente mais
baixo do que o do homem, exercendo as mesmas funções, isso em
todos os níveis de sua carreira profissional. Além disso, a mulher,
em muitas das suas ocupações, por exemplo, no trabalho industrial,
na linha de montagem, às vezes exercia
seu trabalho ou função eventualmente com uma maior
delicadeza ou mais cuidado
do que o homem, fazendo com que o mercado de trabalho por
um lado descubra e passe a
incentivar esse trabalho feminino.
Por outro lado, há que se ressaltar que toda a emancipação
da mulher foi resultante
dos movimentos feministas que tem
origem em meados do século XX, também no período do pós-guerra, estando correlacionado a um
profundo questionamento na sociedade
ocidental sobre certo
modelo de família que até então
era tido como ideal, desejável,
centrado na autoridade do pai,
como uma autoridade moral, econômica.
Embora a temática da família tenha relação
direta para a compreensão
tanto das demandas históricas dos movimentos
feministas quanto uma
problemática recente na sociedade
brasileira que é a da defesa da família, lidar com a temática da família permite ao mesmo tempo discutir como a família
vem sendo abordada no
debate feminista e como a família
entra na reação conservadora aos
feminismos hoje, como uma peça central.
Para Pateman
(1993: 167), “[...]o poder natural dos homens como indivíduos (sobre as mulheres)
abarca todos os aspectos da vida civil. A sociedade
civil como um todo é patriarcal. As mulheres estão submetidas aos homens tanto na esfera privada quanto
na pública”. Nesse sentido, a família
é um espaço de relações marcadas historicamente
pela opressão das mulheres.
Com isso não se quer dizer
que a família não possa ser um espaço
de amor, afeto, um espaço extremamente relevante para a constituição
das identidades das pessoas, mas sim que nós temos conhecimento
suficiente sobre o modo como relações violentas ou mesmo restrições
das vidas das mulheres se estabeleceram
a partir de determinados padrões de organização da vida familiar.
É importante ter isso
em mente, ao mesmo tempo em que compreendemos que não se trata simplesmente de entender que a libertação
das mulheres é uma saída do ambiente familiar em direção a uma vida concorrencial nas relações de trabalho. Há no feminismo socialista marxista e entre as feministas
negras, discussões bastante importantes, como as
promovidas pela filósofa socialista estadunidense, Ângela
Davis (2016) sobre o quanto é preciso conectar a posição das mulheres na vida
doméstica e sua posição nas relações de trabalho com fatos que vão além das opressões
de gênero, como o racismo e a exploração
do trabalho da ampla maioria das mulheres, não apenas pelas suas famílias, mas por homens no espaço doméstico, mas também nos espaços das relações de trabalho remunerado, no mercado de trabalho.
Biroli (2018) considera
que o discurso da libertação das mulheres
da vida doméstica foi muito
importante para alguns setores
do feminismo historicamente, e há
muita razão para isso. A autora considera necessário
recordar que até muito recentemente,
o doméstico foi codificado como o espaço
do feminino, embora na experiência da maioria das mulheres não tem
havido a possibilidade de viver o doméstico como uma forma de
proteção, seja de suas ambições, bem como proteção de relações de trabalho que envolvam uma exploração
bastante aguda dos seus corpos,
da sua energia de trabalho.
Há muitas razões eo
feminismo negro tem apresentado
isso de maneira muito clara, no entanto, para que
seja possível a compreensão de que o espaço
doméstico pode ser um espaço
de vivência segura e de acolhimento
para mulheres que nas relações de trabalho remunerado, numa esfera pública racializadavêem
seus corpos e a sua força de trabalho
sendo explorados, estigmatizados (Biroli,
2018; Davis, 2016; Collins, 1990).
De tal modo, é preciso compreender esse ambiente de relações familiares numa
perspectiva que traga em conjunto a construção histórica
da domesticidade como elemento do feminino,
e a realidade da vida da ampla
maioria das mulheres que não foi nem
é a de que a saída de casa significa encontrar a liberdade, a livre-escolha, a livre construção de suas vidas. Fora de casa as relações de trabalho são marcadas pela exploração e
pelo racismo, constituindo as experiências
de vida de muitas mulheres num país como o Brasil que tem uma ampla maioria
de mulheres (Biroli, 2018).
Entretanto,
a sociedade ainda convive com valores patriarcais bastante
arraigados no que se referem a este papel da mulher, e que ainda repercutem no cenário contemporâneo fazendo-se necessária uma luta constante por maior igualdade no campo do trabalho,
dos salários, e também na
esfera doméstica. Ressalta-se que no sentido da divisão das tarefas, cada vez mais, a partir de setores mais letrados ou de classe média da nossa sociedade, é possível encontrar maior participação do homem nos trabalhos domésticos, maior divisão nas tarefas
relacionadas ao cuidado com
as crianças. Todavia, esta ainda é uma luta
que as mulheres e os homens
em diversas sociedades ainda
precisam prosseguir.
2.3. Maternidade como constructo social e
cultural
Pensar o conceito de maternidade pressupõe refletimos
inicialmente: o que é maternidade? O que é ser mãe? Questões como estas são complexas e passíveis de serem respondidas de distintas maneiras,
seja em termos biológicos,
sociológicos, filosóficos, psicológicos, etc.
É comum que o conceito de maternidade seja associado ao fato de se gerar um bebê,
bem como é possível associar maternidade às práticas de criação e proteção de meninas,
meninos. Todavia, quando se
pensa na maternidade como uma construção social e histórica
há que se considerar que há
uma diversidade enorme de
maternidades, em termos de diferentes formatos
familiares e realidades socioculturais,
como assim explicitam Zanello (2016: 104):
“O primeiro
ponto que precisamos destrinchar é a relação (não necessária)
entre capacidade de procriação
e maternagem. Se a primeira ainda
é possibilidade de apenas parte da população humana; a segunda é uma
habilidade que pode ser desenvolvida
em qualquer um(a). O modo como esta habilidade
é incitada e em quais sujeito(s) são questões que variam no decorrer da história e, também, com diferenças entre culturas
distintas. Neste sentido, a maternidade
deve ser pensada como uma construção social”.
Há no senso
comum a ideia de que as
humanidades negam a biologia,
ao contrário disso, a maneira pela qual as ciências humanas entendem a maternidade não visa negar o aspecto biológico. Este campo do saber
considera a essência da biologia,
sendo inegável a existência de uma materialidade física, todavia,
ser mãe, da maneira como comumente se entende, não é simplesmente dar a luz a um filho, vai
além disso, e por isso se argumenta nas ciências humanas tratar-se de uma
construção sociocultural.
Além disso,
aquilo que entendemos por maternidade
é muito recente. Em termos de história da humanidade, é possível dizer que há 300 anos este conceito não existia,
não era algo que se compreendia,
foi algo construído
gradualmente, com base nas necessidades sociais que foram sendo vivenciadas no mundo.
Portanto, o que se entende
por ser mãe no Brasil não é
necessariamente o mesmo do
que é ser mãe na Índia, por
exemplo. Tem-se no Brasil outra ideia de família, de maternidade. E por mais que seja a mulher que engravide, isso a coloca numa posição central dentro da sociedade
neste sentido. Conforme destaca Steves:
“Por muito tempo a maternidade
foi considerada uma experiência puramente biológica, fixada
literal e simbolicamente nos limites do domínio privado e emocional. Hoje, debatemos a função e o status da maternidade
no espaço público, e sua complexidade aumenta à medida que o sentido de maternidade se diversifica, uma vez que à mãe tradicional
[esta que falávamos a pouco]
vem juntar-se a mãe adotiva, a mãe lésbica, o homossexual que materna, a mãe de
aluguel, a mãe adolescente,
a mãe solteira, a mãe prisioneira, a mãe pobre, negra, a mãe genética,
etc” (Steves, 2007: 18).
Pode haver muitos discursos em torno do fato de ser mãe ou da maternidade, mas também há outra
questão importante; a maternidade
relacionada à experiência individual, ao que estamos tentando viver, mesmo no momento em que se tem um filho
ou uma filha
ou escolher ou não tem
implicações ao ‘ser mãe’.
Sendo um conceito relativamente novo, em termos da história da humanidade, ou até pouco estudado, a maternidade está mais associada a ser mãe e às ações que inclusive estão associadas ao feminino. Ainda
que se dê aqui uma definição muito
geral sobre o conceito ‘maternidade’, ao se perguntar a cada pessoa que vive
a maternidade como a vive, como a define, provavelmente haveria uma amplitude distinta de definições, baseadas em experiências singulares e
significados, a partir dos quais cada um vive esse fenômeno
de maneira particular.Vale
considerar que ser mãe é uma
experiência, cada qual tem uma história
de vida como pessoa, e a experiência
é a forma como cada um entra em
contato com o mundo e
justamente não existe ‘maternidade’,
e sim‘maternidades’. Cada pessoa
que é mãe tem uma forma de ser construída. Há mães, por exemplo,
que dão a luz a uma criança e as abandonam por
motivos diversos, sendo um
deles talvez por não se sentirem
mães, no sentido do esperado socialmente.
“Longe de ser apenas uma
função biológica, a maternidade
inscreve-se num sistema de
códigos articulado e estruturado ideologicamente,
indissociável das concepções
correntes de homem, mulher, família, criança. Encaixa-se, então, num esquema mais amplo de representação.
Nossa cultura destaca, como momentos privilegiados da
trajetória feminina,
gravidez, parto, amamentação, vínculo mãe-filho, em detrimento de outros, fundamentando a ideia de maternidade como meta inevitável”
(Parseval, 1986: 76).
Em outras
palavras, a partir do momento que se diz que a maternidade é algo, se cria uma expectativa social em relação à postura esperada em relação a como se deve agir, como se uma mulher, a partir do momento em que fosse mãe
tivesse de viver única e exclusivamente para esse filho, mas ao mesmo
tempo essa mulher tem inúmeros outros papéis na
vida social. Ela é uma mulher que pode ser mãe, mas que
pode ser uma profissional, ela pode ser uma estudante, alguém que faz trabalho social, enfim, ela pode exercer qualquer outro papel. Logo, a mulher não é no mundo aquela que é a mãe ou a dona de casa, apenas. Ela
pode fazer tudo isso, mas pode ser muito mais do que isso.
Por outro lado, há que ressaltar que a paternidade também é uma construção
sociocultural, que ocorre de muitas
maneiras. Não há algo de invariável, não é possível dizer que há algo de essencial e que será sempre igual
naquilo que comumente se entende como paternidade. O homem durante muito tempo, (para alguns grupos da sociedade essa visão ainda
existe) é aquele que sai de
casa para prover a família,
é aquele associado “à provisão material, exortação, configurando o bom pai como aquele
que não deixa faltar o
alimento e dá lições para a
vida aos(às) filhos(as)” (Freitas et al, 2007:142). Ainda
conforme as autoras:
“[...] esses
comportamentos, frutos de estereótipos
de gênero desvalorizam a participação do homem na gravidez
por reproduzir a máxima de quegestação
é “coisa de mulher”, não havendo surpresa
quando algunspais precisam ver para crer. Agindo assim, os pais se excluem da responsabilidade pela vida do(a) filho(a)
durante a gravidez, por não sesentirem
parte dela” (Coelho, Freitas y Silva, 2007: 142).
Só que é sabido que também nessas novas configurações familiares esses
papéis estão sendo
repensados e precisam ser porque as mulheres saíram para o mercado de
trabalho.Para Castro (2006), apesar
de ser crescente a participação
de mulheres no mercado formal de trabalho,
o grande problema é que estas, ao serem
socialmente ‘impostas como mães’, muitas
vezes abdicam de uma série de outras
possibilidades na vida por terem
de se enquadrar no papel daquilo
que se espera ser uma mãe.Isso
converge ao fato de que os comportamentos esperados por uma mãe são delimitados
principalmente pelo contexto social, assim como também são gerados
estereótipos entre o que é uma
boa e o que é uma mãe ruim. O primeiro caso refere-se à mulher que só quer o melhor
para seus filhos ou filhas, assim
como ‘aquela que sente’ o que
eles precisam sem nenhum esforço, enquanto a mãe ruim é a mulher que vive
constantemente entediada com
os filhos e filhas, que não tem empatia,
é a mulher narcisista, focada
apenas em seus próprios interesses e problemas. Nas palavras de Zanello (2016: 107):
“Em geral, o que se percebe é que a pessoa
da mulher ficou cada vez mais subsumida nas funções maternas e domésticas (de sua própria casa e/ou na casa de outras mulheres). A mensagem propalada é
de que uma boa mãe deveria se apagar em favor de suas responsabilidades para com seus filhos, com
a promessa de felicidade. A
partir de então, não amar
os filhos tornou-se um crime, uma
aberração, a qual deveria ser evitada, ou sendo impossível, disfarçada. Por outro lado, a mãe foi cada vez mais sacralizada: criou-se uma associação de um novo aspecto místico à maternidade, a de santa”.
Nesta ótica, as mulheres que decidem evitar a maternidade são consideradas anormais,
egoístas e imorais, irresponsáveis,
insatisfeitas, imaturas, infelizes e não femininas. Badinter (2011) e Zanello (2016) destacam que estereótipos como estes que constituem o conceito de maternidade, que afetam a imagem da mulher, pouco afeta a imagem
do homem. Todos esses estereótipos perpassam então por uma ideia
de encaixar essa mulher em determinado padrão, caso contrário, esta não será
considerada uma boa mãe,
como se existisse uma suposta lista de funções ou mesmo de sentimentos,
emoções, aos quais se criam expectativas sociais que façam parte do seu ser.
Outro exemplo
corriqueiro e que pode ser considerado menos chocante
nas sociedades ocidentais são pais que abandonam
seus filhos do que mães que façam o mesmo, ou mulheres
que decidem, por exemplo,
que não estão aptas a gerar aquele filho
e recorrem ao aborto. Neste sentido caberia refletir porque não choca tanto um pai abandonar um filho, do que uma mãe, se o sentimento
é essencial para todos, ou
considerando o aspecto biológico, de que metade dessa criança também
seria dele?
Apesar de que na atualidade
esteja começando a haver um despertar para questões como essa, ainda assim o homem
não é tão violentado
socialmente como a mãe. Isso
porque nesses ‘scripts sociais’
que as pessoas tentam se enquadrar ao longo da vida, para
o pai não se espera a mesma postura da mãe porque não foi ele que gerou. Todavia, parte-se do pressuposto de que não é o fato
de um ser possuir hormônios sexuais como estrógeno e progesterona que a faz uma ‘mulher-mãe’, mas sim a relação
que ela estabelecerá com esse filho,
seja por ele ter nascido dela biologicamente,
pelo fato de ter resolvido adotar
ou outro motivo qualquer (Zanello, 2016).
O ideal da maternidade
é um aspecto importante da ideologia
do familismo, que parte do entendimento
de que as famílias são o
suporte possível numa sociedade em que a vida é vivida em constante insegurança, em que os riscos aparecem
continuamente. A família seria esse
espaço de segurança e acolhimento. E ao mesmo tempo, a unidade a partir
da qual uma ordem moral e social adequada se estabeleceria. Neste sentido, o familismo, bem como o maternalismodesempenha
papel central, para não apenas valorizar as famílias, mas de situar o lugar das mulheres
como mães, como lugar especial na construção
de uma ordem familiar que é
a base para uma ordem
social mais ampla (Campos,
2015).
Assim, não se trata de negar a relevância
da maternidade, mas sim refletir
a quem serve a idealização da maternidade.
Considerando que a maternidade é uma
experiência fundamental, de suma importância
para muitas mulheres, omaternalismo não traz simplesmente uma valorização da maternidade. Ele traz uma fusão entre mulher e maternidade que reduz as mulheres a um papel e o faz de maneira
idealizada, como se de um lado a natureza
feminina se reduzisse à dedicação aos filhos,
fosse constituída por um impulso para a maternidade, o
maternal; e de outro lado, como se as mulheres vivenciassem a maternidade em condições muito adequadas e cuidar bem ou não de filhos
fosse algo que pudesse ser escolhido por elas. Então, o ideal da maternidade não permite que as mulheres lidem de fato com as condições reais do exercício da maternidade.
Para que as condições
reais do exercício da maternidade existam é preciso compreender como se define o caráter
social da maternidade e a vulnerabilidade
específica de uma parte das mulheres
quando se tornam mães. É importante, por exemplo,
pensar em que medida a defesa da maternidade
se estende às mulheres que no Brasil perdem seus filhos assassinados
pela polícia nas grandes cidades brasileiras, que são em sua maioria
mulheres negras que têm se
organizado e atuado politicamente
de modo a trazer para a cena pública uma maternidade que pouco tem a ver com esse ideal daqueles que defendem a família como o esteio de uma ordem moral e social, e muitas vezes defendem
as dinâmicas repressivas e
as formas de violência que atingem
diretamente os filhos dessas mesmas mulheres
(Campos, 2015).
Como conectar então
maternidade e Estado de direito
ou maternidade e justiça social? Não é por meio do ideal da maternidade. Não é por meio da idealização romântica do que é o exercício da maternidade pelas mulheres.
Há também uma conexão
bastante cruel entre a defesa da maternidade compulsória, isto é, a oposição ao direito
ao aborto, em contextos em que o conservadorismo se estabelece
de maneira bastante aguda, e uma
baixa preocupação com as condições com que as mulheres reais exercem a maternidade, cuidam dos filhospartindo de uma recusa à possibilidade de que as mulheres tenham o direito de decidir se e quando querem ser mães, que aparece na forma da criminalização
do direito ao aborto (Zanello, 2016).
É preciso, e as
feministas negras têm feito
isso há décadas, colocar o
problema da autonomia reprodutiva
como algo que tem relação com o exercício da maternidade pelas mulheres que desejam serem mães.
A experiência de muitas das
mulheres negras no Brasil, bem
como a experiência de mulheres
indígenas na América Latina é a de uma recusa à possibilidade de que possam exercer a maternidade com segurança devido
a políticas de esterilização que lhes
recusam a possibilidade de
que sejam mães.
Então, como é possível conectar o problema dos limites ao exercício da maternidade ao problema da recusa
ao direito a decidir se serão ou não
mães e quando serão ou não
mães? É preciso olhar para
o Estado e entender quais são
os atores que conseguem incidir no âmbito do direito em países como o Brasil e outros
países latino-americanos nos quais essa problemática se estabelece
de fato conjuntamente.
O Brasil conta
com um Estado altamente repressivo, uma legislação que torna a maternidade
algo compulsório, e ao mesmo tempo, políticas que seguidamente demonstram
o caráter racista do Estado e o modo como as vidas de
mães reais e de seus filhos são
tratadas é uma maneira que pouco tem relação
com qualquer tipo de defesa
da família, com qualquer tipo de idealização do
papel das mulheres, como mães
da sociedade.
Portanto, para além
desse ‘essencialismo’,
considera-se que tudo isso são convenções sociais, e que uma mulher que vai precisar conjugar maternidade com uma carreira profissional,
por exemplo, não tem que se justificar, ela tem de ser mãe da maneira como puder ser. E apesar de ser difícil sair dessas convenções todas, devido ao fato de pertencerem a uma cultura que estabelece o tempo todo como mulheres
e homens devem agir, é papel de todos colocarem essas relações convencionadas em questão. É preciso criar maneiras
de se pensar rupturas nessas convenções,
nessas realidades.
3. Resultados e conclusão
Os
resultados da pesquisa permitem evidenciar como a sociedade dominada pelo capitalismo e
pelo patriarcado, que surge a partir da ideia de propriedade privada, afetou instituições como o casamento e a
família e os transformou em um método para preservar estruturas sociais existentes, a partirda expansão da variedade de trabalhos
domésticos.
No caso
do casamento, junto com a ideia de maternidade, fica evidente o desafio a politização da maternidade em caráter emancipatório, de reconhecer o valor social, econômico
e político do termo, o que tem sido sistematicamente negado. Nesses preceitos, o conceito de maternidade não se limita à sua
dimensão biológica. O foco para as ciências sociais, para a antropologia perpassa pelos sentimentos e as emoções de uma forma mais complexa do que
apenas tratar de hormônios, considerando que esse argumento seria muito
simplista, haja vista que os seres humanos possuem várias dimensões, existe o biológico, o psíquico, o social,
cultural, por envolver a nossa relação
com o mundo, e para alguns,
temos inclusive o lado transcendental.
Falar em maternidade pressupõe também relacionar a uma relação social, cultural e histórica, que muda ao longo do tempo e que se desenvolve em contextos sociais específicos e diversos, mas também
variáveis. Ou seja, trata-se de um conceito tão complexo que cada experiência de maternidade não é como as demais, e mesmo sendo duas
mulheres, ambas mães, há muitas coisas
que convergem e divergem uma da outra.
Ao refletir
historicamente sobre o papel da mulher
na sociedade percebeu-se
que estaera tida como um ser fraco, tolo e incapaz, que
precisa de um homem para
poder se destacar na sociedade. Sem
embargo, vimos que o sistema patriarcal identifica a feminilidade
diretamente associada à maternidade. A sociedade tem um imaginário
sobre o que realmente deve ser uma
boa mulher, que nestes
termos, é aquela mulher que
apresenta sentimentos
maternos por uma pessoa que
ela considera sua filha ou filho.
Ao tratar dos papéis da mulher na sociedade atual: mãe, esposa, companheira de trabalho,
administradora e mantenedora afetiva
do lar, observou-se que o primeiro
objetivo da mulher na sociedade
é justamente ser mulher, pertencente
à identidade. Observou-se
que o fenômeno da maternidade
não deveria ser um limitante para a realização de
uma mulher, pois estas podem desejar ter êxitos profissionais ou pessoais sem se sentir excluída da sociedade simplesmente por não ter assumido o papel de mãe.
Há algo de natural na maternidade que naturalmente termina com
a maternidade biológica, e esta por sua vez termina assim que nasce um bebê porque o que vem depois disso
são formas de lidar com construções sociais e culturais. A partir do
momento em que se criou a
expectativa em termos do ‘ser mãe’,
se essa mulher não cumprir aquilo
que é colocado a ela como função
feminina por excelência, concernente à natureza da mulher, ou se desvencilhar um pouco disso, lhes
são incumbidos estereótipos
diversos, como ‘mãe desnaturada’,
‘triste’, ‘incompleta’, etc.
Além disso,
os arranjos familiares hão
de ser considerados, pois estes
são cada vez mais reconhecidos, e não necessariamente envolvem uma mãe e um
filho ou a família nuclear clássica composta
por pai, mãe e filho. Apresença da mulher
no mercado de trabalho acaba por esvaziar
esse lugar de dona de casa e responsável
pelo cuidado dos filhos.
Por fim, os tempos mudam e hoje esses pensamentos
arraigados estão evoluindo,
graças à luta constante das
mulheres que cada vez mais vêm conquistando seu reconhecimento na sociedade, graças ao surgimento
do movimento feminista que vem atuando no sentido de abrir espaços
hegemonicamente dominados pelos homens,
principalmente os espaços da intelectualidade
e o trabalho como um todo, portanto, lutando pela aceitação das mulheres em condições
de igualdade no mundo.
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