Maternidade como construção sócio-histórica

 

Maternity as a historical socialconstruction

 

 

 

 

Wéllia Pimentel Santos

 

welliapimentel@hotmail.com

 

Universidade de Salamanca – España

 

Recibido:   06-09-2022

Aceptado:  24-05-2023

 

 

 

Resumo

A pesquisa em foco reflete a concepção de maternidade a partir da construção social veiculada ao instinto inato a todas as mulheres. Assim, foi realizada uma varredura na literatura de modo a construir discussões expressas pelas categorias desenvolvidas pelo feminismo materialista francês à luz da produção/reprodução social da existência proposta por Christine Delphy, bem como realizou-se uma pesquisa de natureza teórico-conceitual, a partir de análises das categorias: patriarcado, divisão sexual do trabalho, constructo social, cultural da maternidade, familismo tendo como autoras centrais: Badinter, Biroli, Pinto, Campos. Dentre os resultados mais significativos da pesquisa  evidenciou-se como se sedimentam os estereótipos de gênero que compreendem a mulher enquanto mãe, restrita ao ambiente doméstico, privado enquanto o homem pertencente à esfera pública.

Palavras-chave: mulher, maternidade, sociedade, cultura.

 

Abstract

The research in focus reflects the conception of motherhood from the social construction conveyed to the innate instinct of all women. Thus, a survey of the literature was carried out in order to build discussions expressed by the categories developed by French materialist feminism in the light of the social production/reproduction of existence proposed by Christine Delphy, as well as a theoretical-conceptual research, based on analysis of the categories: patriarchy, sexual division of labor, social, cultural construct of motherhood, familism having as central authors: Badinter, Biroli, Pinto, Campos. Among the most significant results of the research, it was evident how the gender stereotypes that understand the woman as mother, restricted to the domestic environment, and private while the man belongs to the public sphere.

Keywords: woman, maternity, society, culture.

1. Introdução

 

 

As pessoas são um conjunto de relações, somos atravessados ​​pela história, pela sociedade, temos imaginários quem se expressam sejam por ideologias, símbolos, utopias, e também por alegorias, rituais, mitos. O teórico prussianoKarl Marx diz que somos produtos das estruturas sociais, do progresso histórico. Como esteio do materialismo histórico-dialético, Marx afirma que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (Marx, 1974:136).

Nesses preceitos, Marx (1974) compreende a constituição do ser social a partir da compreensão da categoria trabalho como fundante do ser social, e para além do trabalho, as demais formas de práxis, como a práxis educativa e a práxis política. O trabalho e as demais formas de práxis vão se particularizar na especificidade histórica da sociedade capitalista onde esses processos da vida social se encontram majoritariamente subsumidos a um processo de alienação e de exploração.

Os seres humanos são verdadeiramente complexos porque são compostos por uma parte biológica que de alguma forma os faz ser, e outras partes, como diriam os antropólogos, são animais racionais. São entidades sociais, dependentes do momento histórico em construção, fruto do lugar em que nascemos. Tudo isso vai moldar o que seria a parte psicológica, mental, de como os seres humanos se projetam e como vão dar sentido ao corpo, à mente, à sociedade em que todos fazem parte e serelacionam. Os seres humanos são, então, o resultado de todos esses componentes, e devido a isso, cada indivíduo é parte de uma construção histórico-social e cultural.

Isso nos remete a um mito sobre o conceito de maternidade, ao qual se resume em três falácias: a primeira é que todas as mulheres querem ser mães; a segunda é que todas as mães precisam de suas filhas/filhos, e a terceira é que todas as filhas/filhos precisam de suas mães, o que implica que a maternidade exige atenção exclusiva da mãe à sua família e, portanto, a mulher experimenta um autossacrifício para poder se dedicar integralmente aos filhos, sendo as pessoas que violam esses padrões consideradas desviantes ou deficientes.Considerando esses pressupostos, este artigo se propõe a refletir sobre a maternidade como um constructo histórico-social,com base no seguinte questionamento: as mulheres nascem determinadas biologicamente para a maternidade?

Isso porque, apesar das sociedades atuais afirmarem que é legitima a decisão individual de muitas mulheres não serem mães, na realidade, a dinâmica diária não aceita isso com naturalidade, o que as diferencia dos homens que não precisam da paternidade para se completar como pessoa, estas dependem da identidade materna para suas realizações. Entretanto, parte-se do pressuposto de que a maternidade não se refere apenas ao aspecto biológico, mas sim à construção simbólica tanto da mulher quanto da mãe, e isso significa que a maternidade é, entre outras coisas, um fato cultural.

As ciências sociais e humanas nos têm mostrado que os assuntos que por vezes são os mais cotidianos, os mais próximos da nossa experiência vital podem ser observados como objetos de estudos, como objetos científicos, e ao fazer esse exercício, que também é propiciado pelos estudos feministas, vamos ‘desnaturalizando’ aquelas realidades que por cotidiana, às vezes damos por natural. Portanto, a proposta de converter a maternidade por objeto de estudo vai passar por desnaturalizar a maternidade (singular) por maternidades (no plural).

 

 

1.1. Objetivos e metodologia

 

 

A pesquisa em foco tem como objetivo refletir a concepção de maternidade a partir de uma construção social veiculada ao instinto inato a todas as mulheres. Para tanto, foi realizada uma varredura na literatura pertinente a temática de modo a construir discussões expressas pelas categorias desenvolvidas pelo feminismo materialista francês à luz da produção/reprodução social da existência proposta por Christine Delphy (2015), bem como, de modo a estabelecer uma perspectiva histórica, social sobre a temática em foco realizou-se uma pesquisa de natureza teórico-conceitual, a partir de análises das categorias: patriarcado, divisão sexual do trabalho, constructo social, cultural da maternidade, familismo tendo como autoras centrais: Badinter, (2003; 1985; 2011), Biroli (2016), Pinto (2003), Campos (2015). 

 

 

2. Desenvolvimento

 

 

2.1. Breve contextualização histórica sobre as mulheres em diferentes sociedades

 

Ao refletir historicamente o papel da mulher em diferentes sociedades tem-se que na História Antiga, com a fixação das pessoas em centros urbanos e aldeias ampliou-se o domínio masculino sobre as mulheres. Os homens tornaram-se os principais responsáveis pelas plantações, embora as mulheres e as crianças também trabalhassem nessa atividade.

Considerando-se que a maternidade consumia tempo, os homens assumiram funções de comando, o que levou às mulheres a passar a ter suas vidas definidas pela gravidez e pelo cuidado das crianças. Essa se tornou uma característica das chamadas sociedades patriarcais em que os homens eram considerados superiores e em geral tinham direitos que às mulheres eram negados. Conforme destaca Pinto (2003), a desigualdade entre homens e mulheres marcou muitas sociedades antigas. Nas sociedades patriarcais, as mulheres tinham poucas condições de protesto, embora algumas pudessem obter certa influência sobre o seu marido e filhos ou sobre as mulheres sob seu domínio no ambiente doméstico.

Durante séculos perdurou a imagem da mulher em condições equivalentes às de escravo, numa época em que ser livre significava basicamente ser homem. As funções primordiais femininas eram a reprodução, amamentação e a criação dos filhos. O filósofo grego Aristóteles (2005) explica que a submissão das mulheres aos homens deu-se pela superioridade da autoridade masculina diante das vontades do casal, bem como da necessidade de as mulheres se guardarem no interior da família, cumprindo o papel de mãe e dando educação aos filhos. Segundo ele, as mulheres não poderiam conduzir seus desejos e as relações com os outros, pois quem cumpria o papel de sobrepujá-las eram os homens.

Foi somente no final do período medieval que as mulheres passaram assumir alguns papéis no desenvolvimento econômico das cidades. Surgiu um novo modelo de relação de trabalho, tendo em vista o alto crescimento da economia urbana. Neste contexto, as mulheres passaram a ser inseridas num espaço que visavam intercalar trabalho e cotidiano, no qual através do casamento o homem e a mulher formavam o núcleo da atividade econômica.

Por mais que essa porta tenha sido aberta e tenha surgido a possibilidade de as mulheres alcançarem independência social e profissional ainda havia conflitos com os ditames impostos pela economia, pela política e pela mentalidade. Isso permanência de tal forma que a formação da mulher se voltada para a área da família e da economia doméstica, não havendo a possibilidade de terem uma formação profissional ou científica.

No período renascentista, entre os séculos XIV e XVI, o trabalho feminino era depreciado. As mulheres que trabalhavam eram desvalorizadas, mas nem por isso deixaram de exercer suas atividades, pois as necessidades materiais de sobrevivência exigiam que assim o fosse. Essa desvalorização acarretava o recebimento de remuneração inferior à dos homens e, consequentemente, havia exploração da mão de obra feminina para que houvesse maior acúmulo de capital (Pinto, 2003).

No contexto da Revolução Francesa, inspirada nos ideais iluministas, e motivada pela situação de crise que a França vivia no final do século XVIII, as mulheres insatisfeitas com a sua situação tentaram conquistar a mesma liberdade dada aos homens. A ativista política e feminista Olympe de Gouges, indignada com a sujeição das mulheres à sociedade machista propôs a Declaração dos Direitos da Mulher (1791), comparável a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pretendendo assim acabar com os privilégios dos homens. Este foi o grande marco da luta feminina pela igualdade. Todavia, Olympe foi sentenciada à morte e guilhotinada em 1739, sob a acusação de ter deixado de lado os benefícios do seu gênero (Badinter, 2003).

As mulheres francesas não desistiram, e continuaram a lutar, e dentre algumas das vitórias alcançadas estava o direito de voto, que passou a receber também o apoio dos católicos. É nesse período da história que o feminismo ganha força e passa a ser visto como uma ação política organizada cujo objetivo era reivindicar os direitos de cidadãos diante das barreiras que lhes colocavam. Esse movimento passa por um discurso voltado para luta das mulheres.

Na Inglaterra, o movimento feminista foi marcado por muitas críticas, levando pensadores como Jean-Jacques Rousseau (1999) a acreditar que o homem pertence ao mundo externo e as mulheres ao interno, devendo estas sempre estar a serviço dos homens. Alguns filósofos contestaram tal afirmação, considerando a existência de diferenças naturais entre os sexos, tanto de caráter quanto relacionadas à inteligência. A suposta inferioridade da mulher se dava pela sua falta de acesso à educação, propondo-se então que as mulheres passassem a ter as mesmas oportunidades de formação intelectual, bem como a de desenvolver-se fisicamente igual aos homens.

É fundamental explicitar que o conceito de maternidade surge principalmente no século XIX e considera a mulher como o ‘centro’ do lar, assim, como a responsável pelo bem-estar dos filhos e da família. Friedrich Engels, em sua obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado (2006), considera que a desigualdade entre homens e mulheres na forma como se manifestava neste contexto, surge a partir da ideia de propriedade privada e da expansão da variedade de trabalhos domésticos. Como a esfera pública era dominada por homens burgueses, estes podiam aumentar seu poder econômico, mas tinham um interesse importante, que sua fortuna fosse herdada por um filho legítimo do sexo masculino. Para isso, precisavam que a estrutura familiar fosse patriarcal, heterossexual e monogâmica, pelo menos na aparência, e como tinham o poder que o sistema capitalista lhes dava, era muito fácil ajustar o modelo de família ideal de forma que beneficiasse a seus interesses.

O teórico prussiano destaca que o casamento era então constituído por uma relação de propriedade. E sendo muito comum a existência de famílias numerosas, quanto maior o número de filhos que a mulher tinha, mais ela ficava presa ao papel que lhe fora imposto (Engels, 2006). Foi assim que a relação de marido ou mulher adquiriu uma dimensão laboral de trabalho não reconhecido, na qual, de certa forma, o trabalho da mulher era potencialmente ilimitado, ou seja, não havia salário, limite de tempo ou benefícios.

A socióloga Christine Delphy (2015), uma das primeiras a aplicar conceitos marxistas à análise feminista, tornando-se referência para estudos posteriores, analisa como a sociedade dominada pelo capitalismo e pelo patriarcado afetou o casamento e o transformou em um método para preservar as estruturas sociais existentes, principalmente aquelas influenciadas pelo machismo da época. No caso do casamento, junto com a ideia de maternidade, fica evidente que de alguma forma as meninas são estimuladas a desejá-lo, seja por meio de filmes, histórias, brinquedos e outros meios culturais. Como argumenta a pensadora, isso em si não é ruim, o problema é que essas ideias estavam intimamente ligadas ao papel de prestatividade e subalternidade ao marido.

No caso do homem, dificilmente ele foi estimulado a idealizar o casamento. Os homens foram historicamente educados para ter sucesso como pessoa, o que implica numa desvantagem; se o marido aprendeu a pensar em si e no seu desenvolvimento e a esposa aprendeu a servir a família, é quase inevitável que a relação seja injusta. E ainda que os cônjuges pudessem se amar de verdade, isso não impedia que a exploração ocorresse, principalmente quando era tão normalizada. A esposa podia gostar ou ter aptidão para certas atividades, mas ainda espera-se muito dela em condições que podem facilmente se transformar em opressão (Delphy, 2015). Em outras palavras, o casamento se tornou uma institucionalização do trabalho feminino, pois na medida em que a mulher decidisse trabalhar fora, ainda se considerava que ela deveria assumir integralmente os cuidados com a família e a casa, tornando sua responsabilidade ainda mais pesada.

Outro aspecto a ser considerado é que mesmo as mulheres solteiras acabavam trabalhando dessa forma, sendo comum que pais e irmãos se apropriassem de seu trabalho.  Obviamente, este sistema se aplicava, sobretudo, às famílias de classe média baixa, que na classe alta a maioria das mulheres dispunha de criados, o que pressupõe formas diferenciadas de submissão. Logo, o sistema capitalista patriarcal evidenciava a importância na divisão dos sexos, enfatizando como deveria ser preservados comportamentos de homem e mulher, bem como a forma que deveriam se relacionar para que o sistema se mantivesse estável.

Para Marx (1974) em qualquer momento da história da humanidade o setor que controla a produção econômica e as relações de trabalho é também o setor que controla as formas de pensamento, que inclui desde as teorias até as formas de se explicar o mundo, e as ideias que pairam a cabeça dos indivíduos.

Nesse sentido, podemos apreender que hoje o machismo, o racismo, e a LGBTfobia são tão fortes ainda em diversas sociedades ocidentais porque o setor que controla a economia é majoritariamente constituído de homens, brancos, cuja orientação sexual é majoritariamente heterossexual. Não é uma coincidência o fato de que a produção esteja nas mãos de uma maioria branca, masculina e hétero que faz com que ideias como o racismo, o machismo e aLGBTfobia sejam disseminadas. Mas sim para manter os seus privilégios.

 

2.2. Movimentos feministas e avanços do lugar da mulher na sociedade

 

Uma das principais mudanças da sociedade ao longo do século XX, no período das duas grandes guerras, referiu-se ao lugar da mulher na sociedade. Isso porque, de alguma maneira a mulher foi também demandada a adentrar no mercado de trabalho, seja porque o homem tenha sidochamado a prestar serviço em defesa de sua pátria, morreu nos campos de batalha ou talvez devido ao fato de que a própria máquina de guerra acabou demandando uma maior produção em vários sentidos, levando com que as mulheres, além de cuidarem de seus afazeres particulares, começassem a acumular as responsabilidades de toda uma comunidade.

Nestes termos, de alguma maneira, as duas grandes guerras mundiais produziram no século XX, na sociedade ocidental, um profundo questionamento de todas as instituições, a partir daquilo que se chama de ‘civilização’. Depois da guerra, ou a partir das duas guerras houve uma crise das instituições sociais que foram profundamente questionadas, com o Movimento de Maio de 1968, os movimentos da contracultura. Este novo paradigma de políticas impôs um novo olhar sobre as políticas sociais, sobre as universidades, inclusive sobre a família, que de alguma maneira entrou em crise, passando a serem questionados seus arranjos, suas hierarquias internas.

Sobre o impacto do capitalismo moderno na vida das mulheres, Helena Hirata (2001), em sua obra Globalização e divisão sexual do trabalho explicita comoconsequência do capitalismo globalizadotem-se a divisão sexual do trabalho e as transformações no trabalho e emprego das mulheres.

Biroli (2016) complementa que essa divisão sexual do trabalho parte da ideia de que os homens exercem um tipo de trabalho e as mulheres outro tipo. No primeiro momento a impressão que é de que os dois trabalhos se complementam. No entanto, os homens ficam com o trabalho produtivo (público) e às mulheres é destinado o trabalho reprodutivo, isto é, elas são destinadas à esfera privada, a esfera do cuidado, da reprodução, da comida. Conforme a autora, isso não é complementar porque o trabalho dos homens tende a ser muito mais valorizado, inclusive socialmente porque são os homens que estão majoritariamente inseridos nos trabalhos e serviços políticos, militares, portanto, tudo aquilo que é extremamente valorizado dentro da nossa sociedade, ao passo que o trabalho doméstico será extremamente desvalorizado. Basta pensar que economicamente ele não tem nenhuma função. Ele não é valorizado economicamente. As mulheres não ganham porque trabalham em casa.

 Então o que ocorre não é uma divisão sexual complementar, é uma divisão sexual que leva em consideração uma ordem de gênero, ou seja, como se houvesse uma natureza feminina e uma natureza masculina e cada qual tivesse habilidade para funções diferentes e ao mesmo tempo, além de levar em consideração dentro dessa divisão sexual que também existe uma hierarquização desse trabalho, e, outros termos, o trabalho masculino será sempre mais valorizado do que o trabalho feminino (Biroli, 2016).

No caso do Brasil, é preciso sempre lembrar que a entrada da mulher no mercado de trabalho trata-se de um fenômeno principalmente relacionado às classes médias urbanas, haja vista que a mulher pobre sempre trabalhou nos meios rurais, maiormente como empregadas domésticas, grande parte em trabalhos precários, sem uma formalidade ou garantias ligadas à regularização do trabalho formal. E também porque de alguma maneira, muitas vezes, em muitas famílias brasileiras pobres, a mulher se tornou chefe de família, quer dizer, não teve um companheiro, um marido ou um pai com maior estabilidade presente. Obviamente, isso não é a totalidade dos casos, mas é bastante frequente até na atualidade (Rago, 1997).

Com a implementação das fábricas e com o desenvolvimento da tecnologia as mulheres passaram a trabalhar dentro do setor fabril em atividades compatíveis às que existiam dentro de casa, com condições degradantes e como remuneração sempre inferior à dos homens. Uma das justificativas para tal diferença era a de que não havia necessidade de as mulheres ganharem mais que os homens, pois elas tinham quem as sustentassem, no caso eles próprios. Segundo Rago:

 

“As barreiras enfrentadas pelas mulheres para participar do mundo dos negócios eram sempre muito grandes, independentemente da classe social a que pertencessem. Da variação salarial à intimidação física, da desqualificação intelectual ao assedio sexual, elas tiveram sempre de lutar contra inúmeros obstáculos para ingressar em um campo definido – pelos homens – como naturalmente masculino. Esses obstáculos não se limitavam ao processo de produção; começavam pela própria hostilidade com que o trabalho feminino fora do lar era tratado no interior da família. Os pais desejavam que as filhas encontrassem um bom partido para casar e assegurar o futuro, e isso batia de frente com as aspirações de trabalhar fora e obter êxito em suas profissões” (Rago, 1997: 581-582).

 

E até hoje isso reverbera nas sociedades contemporâneas, onde é evidenciado pelas estatísticas que o salário da mulher tende a ser significativamente mais baixo do que o do homem, exercendo as mesmas funções, isso em todos os níveis de sua carreira profissional. Além disso, a mulher, em muitas das suas ocupações, por exemplo, no trabalho industrial, na linha de montagem, às vezes exercia seu trabalho ou função eventualmente com uma maior delicadeza ou mais cuidado do que o homem, fazendo com que o mercado de trabalho por um lado descubra e passe a incentivar esse trabalho feminino.

Por outro lado, que se ressaltar que toda a emancipação da mulher foi resultante dos movimentos feministas que tem origem em meados do século XX, também no período do pós-guerra, estando correlacionado a um profundo questionamento na sociedade ocidental sobre certo modelo de família que até então era tido como ideal, desejável, centrado na autoridade do pai, como uma autoridade moral, econômica.

Embora a temática da família tenha relação direta para a compreensão tanto das demandas históricas dos movimentos feministas quanto uma problemática recente na sociedade brasileira que é a da defesa da família, lidar com a temática da família permite ao mesmo tempo discutir como a família vem sendo abordada no debate feminista e como a família entra na reação conservadora aos feminismos hoje, como uma peça central.

Para Pateman (1993: 167), “[...]o poder natural dos homens como indivíduos (sobre as mulheres) abarca todos os aspectos da vida civil. A sociedade civil como um todo é patriarcal. As mulheres estão submetidas aos homens tanto na esfera privada quanto na pública”. Nesse sentido, a família é um espaço de relações marcadas historicamente pela opressão das mulheres. Com isso não se quer dizer que a família não possa ser um espaço de amor, afeto, um espaço extremamente relevante para a constituição das identidades das pessoas, mas sim que nós temos conhecimento suficiente sobre o modo como relações violentas ou mesmo restrições das vidas das mulheres se estabeleceram a partir de determinados padrões de organização da vida familiar.

É importante ter isso em mente, ao mesmo tempo em que compreendemos que não se trata simplesmente de entender que a libertação das mulheres é uma saída do ambiente familiar em direção a uma vida concorrencial nas relações de trabalho. no feminismo socialista marxista e entre as feministas negras, discussões bastante importantes, como as promovidas pela filósofa socialista estadunidense, Ângela Davis (2016) sobre o quanto é preciso conectar a posição das mulheres na vida doméstica e sua posição nas relações de trabalho com fatos que vão além das opressões de gênero, como o racismo e a exploração do trabalho da ampla maioria das mulheres, não apenas pelas suas famílias, mas por homens no espaço doméstico, mas também nos espaços das relações de trabalho remunerado, no mercado de trabalho.

Biroli (2018) considera que o discurso da libertação das mulheres da vida doméstica foi muito importante para alguns setores do feminismo historicamente, e muita razão para isso. A autora considera necessário recordar que até muito recentemente, o doméstico foi codificado como o espaço do feminino, embora na experiência da maioria das mulheres não tem havido a possibilidade de viver o doméstico como uma forma de proteção, seja de suas ambições, bem como proteção de relações de trabalho que envolvam uma exploração bastante aguda dos seus corpos, da sua energia de trabalho.

muitas razões eo feminismo negro tem apresentado isso de maneira muito clara, no entanto, para que seja possível a compreensão de que o espaço doméstico pode ser um espaço de vivência segura e de acolhimento para mulheres que nas relações de trabalho remunerado, numa esfera pública racializadavêem seus corpos e a sua força de trabalho sendo explorados, estigmatizados (Biroli, 2018; Davis, 2016; Collins, 1990).

De tal modo, é preciso compreender esse ambiente de relações familiares numa perspectiva que traga em conjunto a construção histórica da domesticidade como elemento do feminino, e a realidade da vida da ampla maioria das mulheres que não foi nem é a de que a saída de casa significa encontrar a liberdade, a livre-escolha, a livre construção de suas vidas. Fora de casa as relações de trabalho são marcadas pela exploração e pelo racismo, constituindo as experiências de vida de muitas mulheres num país como o Brasil que tem uma ampla maioria de mulheres (Biroli, 2018).

Entretanto, a sociedade ainda convive com valores patriarcais bastante arraigados no que se referem a este papel da mulher, e que ainda repercutem no cenário contemporâneo fazendo-se necessária uma luta constante por maior igualdade no campo do trabalho, dos salários, e também na esfera doméstica. Ressalta-se que no sentido da divisão das tarefas, cada vez mais, a partir de setores mais letrados ou de classe média da nossa sociedade, é possível encontrar maior participação do homem nos trabalhos domésticos, maior divisão nas tarefas relacionadas ao cuidado com as crianças. Todavia, esta ainda é uma luta que as mulheres e os homens em diversas sociedades ainda precisam prosseguir.

 

2.3. Maternidade como constructo social e cultural

 

Pensar o conceito de maternidade pressupõe refletimos inicialmente: o que é maternidade? O que é ser mãe? Questões como estas são complexas e passíveis de serem respondidas de distintas maneiras, seja em termos biológicos, sociológicos, filosóficos, psicológicos, etc.

É comum que o conceito de maternidade seja associado ao fato de se gerar um bebê, bem como é possível associar maternidade às práticas de criação e proteção de meninas, meninos. Todavia, quando se pensa na maternidade como uma construção social e histórica que se considerar que uma diversidade enorme de maternidades, em termos de diferentes formatos familiares e realidades socioculturais, como assim explicitam Zanello (2016: 104):

 

“O primeiro ponto que precisamos destrinchar é a relação (não necessária) entre capacidade de procriação e maternagem. Se a primeira ainda é possibilidade de apenas parte da população humana; a segunda é uma habilidade que pode ser desenvolvida em qualquer um(a). O modo como esta habilidade é incitada e em quais sujeito(s) são questões que variam no decorrer da história e, também, com diferenças entre culturas distintas. Neste sentido, a maternidade deve ser pensada como uma construção social”.

 

no senso comum a ideia de que as humanidades negam a biologia, ao contrário disso, a maneira pela qual as ciências humanas entendem a maternidade não visa negar o aspecto biológico. Este campo do saber considera a essência da biologia, sendo inegável a existência de uma materialidade física, todavia, ser mãe, da maneira como comumente se entende, não é simplesmente dar a luz a um filho, vai além disso, e por isso se argumenta nas ciências humanas tratar-se de uma construção sociocultural.

Além disso, aquilo que entendemos por maternidade é muito recente. Em termos de história da humanidade, é possível dizer que 300 anos este conceito não existia, não era algo que se compreendia, foi algo construído gradualmente, com base nas necessidades sociais que foram sendo vivenciadas no mundo. Portanto, o que se entende por ser mãe no Brasil não é necessariamente o mesmo do que é ser mãe na Índia, por exemplo. Tem-se no Brasil outra ideia de família, de maternidade. E por mais que seja a mulher que engravide, isso a coloca numa posição central dentro da sociedade neste sentido. Conforme destaca Steves:

 

“Por muito tempo a maternidade foi considerada uma experiência puramente biológica, fixada literal e simbolicamente nos limites do domínio privado e emocional. Hoje, debatemos a função e o status da maternidade no espaço público, e sua complexidade aumenta à medida que o sentido de maternidade se diversifica, uma vez que à mãe tradicional [esta que falávamos a pouco] vem juntar-se a mãe adotiva, a mãe lésbica, o homossexual que materna, a mãe de aluguel, a mãe adolescente, a mãe solteira, a mãe prisioneira, a mãe pobre, negra, a mãe genética, etc(Steves, 2007: 18).

 

Pode haver muitos discursos em torno do fato de ser mãe ou da maternidade, mas também outra questão importante; a maternidade relacionada à experiência individual, ao que estamos tentando viver, mesmo no momento em que se tem um filho ou uma filha ou escolher ou não tem implicações ao ‘ser mãe’.

Sendo um conceito relativamente novo, em termos da história da humanidade, ou até pouco estudado, a maternidade está mais associada a ser mãe e às ações que inclusive estão associadas ao feminino. Ainda que se aqui uma definição muito geral sobre o conceitomaternidade’, ao se perguntar a cada pessoa que vive a maternidade como a vive, como a define, provavelmente haveria uma amplitude distinta de definições, baseadas em experiências singulares e significados, a partir dos quais cada um vive esse fenômeno de maneira particular.Vale considerar que ser mãe é uma experiência, cada qual tem uma história de vida como pessoa, e a experiência é a forma como cada um entra em contato com o mundo e justamente não existe ‘maternidade’, e sim‘maternidades’. Cada pessoa que é mãe tem uma forma de ser construída. mães, por exemplo, que dão a luz a uma criança e as abandonam por motivos diversos, sendo um deles talvez por não se sentirem mães, no sentido do esperado socialmente.

 

Longe de ser apenas uma função biológica, a maternidade inscreve-se num sistema de códigos articulado e estruturado ideologicamente, indissociável das concepções correntes de homem, mulher, família, criança. Encaixa-se, então, num esquema mais amplo de representação. Nossa cultura destaca, como momentos privilegiados da trajetória feminina, gravidez, parto, amamentação, vínculo mãe-filho, em detrimento de outros, fundamentando a ideia de maternidade como meta inevitável” (Parseval, 1986:  76).

 

Em outras palavras, a partir do momento que se diz que a maternidade é algo, se cria uma expectativa social em relação à postura esperada em relação a como se deve agir, como se uma mulher, a partir do momento em que fosse mãe tivesse de viver única e exclusivamente para esse filho, mas ao mesmo tempo essa mulher tem inúmeros outros papéis na vida social. Ela é uma mulher que pode ser mãe, mas que pode ser uma profissional, ela pode ser uma estudante, alguém que faz trabalho social, enfim, ela pode exercer qualquer outro papel. Logo, a mulher não é no mundo aquela que é a mãe ou a dona de casa, apenas. Ela pode fazer tudo isso, mas pode ser muito mais do que isso.

Por outro lado, que ressaltar que a paternidade também é uma construção sociocultural, que ocorre de muitas maneiras. Não algo de invariável, não é possível dizer que algo de essencial e que será sempre igual naquilo que comumente se entende como paternidade. O homem durante muito tempo, (para alguns grupos da sociedade essa visão ainda existe) é aquele que sai de casa para prover a família, é aquele associado “à provisão material, exortação, configurando o bom pai como aquele que não deixa faltar o alimento e lições para a vida aos(às) filhos(as)” (Freitas et al, 2007:142). Ainda conforme as autoras:

 

“[...] esses comportamentos, frutos de estereótipos de gênero desvalorizam a participação do homem na gravidez por reproduzir a máxima de quegestação é “coisa de mulher”, não havendo surpresa quando algunspais precisam ver para crer. Agindo assim, os pais se excluem da responsabilidade pela vida do(a) filho(a) durante a gravidez, por não sesentirem parte dela” (Coelho, Freitas y Silva, 2007: 142).

 

que é sabido que também nessas novas configurações familiares esses papéis estão sendo repensados e precisam ser porque as mulheres saíram para o mercado de trabalho.Para Castro (2006), apesar de ser crescente a participação de mulheres no mercado formal de trabalho, o grande problema é que estas, ao serem socialmente ‘impostas como mães’, muitas vezes abdicam de uma série de outras possibilidades na vida por terem de se enquadrar no papel daquilo que se espera ser uma mãe.Isso converge ao fato de que os comportamentos esperados por uma mãe são delimitados principalmente pelo contexto social, assim como também são gerados estereótipos entre o que é uma boa e o que é uma mãe ruim. O primeiro caso refere-se à mulher que quer o melhor para seus filhos ou filhas, assim como ‘aquela que sente’ o que eles precisam sem nenhum esforço, enquanto a mãe ruim é a mulher que vive constantemente entediada com os filhos e filhas, que não tem empatia, é a mulher narcisista, focada apenas em seus próprios interesses e problemas. Nas palavras de Zanello (2016: 107):

 

Em geral, o que se percebe é que a pessoa da mulher ficou cada vez mais subsumida nas funções maternas e domésticas (de sua própria casa e/ou na casa de outras mulheres). A mensagem propalada é de que uma boa mãe deveria se apagar em favor de suas responsabilidades para com seus filhos, com a promessa de felicidade. A partir de então, não amar os filhos tornou-se um crime, uma aberração, a qual deveria ser evitada, ou sendo impossível, disfarçada. Por outro lado, a mãe foi cada vez mais sacralizada: criou-se uma associação de um novo aspecto místico à maternidade, a de santa”.

 

Nesta ótica, as mulheres que decidem evitar a maternidade são consideradas anormais, egoístas e imorais, irresponsáveis, insatisfeitas, imaturas, infelizes e não femininas. Badinter (2011) e Zanello (2016) destacam que estereótipos como estes que constituem o conceito de maternidade, que afetam a imagem da mulher, pouco afeta a imagem do homem. Todos esses estereótipos perpassam então por uma ideia de encaixar essa mulher em determinado padrão, caso contrário, esta não será considerada uma boa mãe, como se existisse uma suposta lista de funções ou mesmo de sentimentos, emoções, aos quais se criam expectativas sociais que façam parte do seu ser.

Outro exemplo corriqueiro e que pode ser considerado menos chocante nas sociedades ocidentais são pais que abandonam seus filhos do que mães que façam o mesmo, ou mulheres que decidem, por exemplo, que não estão aptas a gerar aquele filho e recorrem ao aborto. Neste sentido caberia refletir porque não choca tanto um pai abandonar um filho, do que uma mãe, se o sentimento é essencial para todos, ou considerando o aspecto biológico, de que metade dessa criança também seria dele?

Apesar de que na atualidade esteja começando a haver um despertar para questões como essa, ainda assim o homem não é tão violentado socialmente como a mãe. Isso porque nesses ‘scripts sociais’ que as pessoas tentam se enquadrar ao longo da vida, para o pai não se espera a mesma postura da mãe porque não foi ele que gerou. Todavia, parte-se do pressuposto de que não é o fato de um ser possuir hormônios sexuais como estrógeno e progesterona que a faz umamulher-mãe’, mas sim a relação que ela estabelecerá com esse filho, seja por ele ter nascido dela biologicamente, pelo fato de ter resolvido adotar ou outro motivo qualquer (Zanello, 2016).

O ideal da maternidade é um aspecto importante da ideologia do familismo, que parte do entendimento de que as famílias são o suporte possível numa sociedade em que a vida é vivida em constante insegurança, em que os riscos aparecem continuamente. A família seria esse espaço de segurança e acolhimento. E ao mesmo tempo, a unidade a partir da qual uma ordem moral e social adequada se estabeleceria. Neste sentido, o familismo, bem como o maternalismodesempenha papel central, para não apenas valorizar as famílias, mas de situar o lugar das mulheres como mães, como lugar especial na construção de uma ordem familiar que é a base para uma ordem social mais ampla (Campos, 2015).

Assim, não se trata de negar a relevância da maternidade, mas sim refletir a quem serve a idealização da maternidade. Considerando que a maternidade é uma experiência fundamental, de suma importância para muitas mulheres, omaternalismo não traz simplesmente uma valorização da maternidade. Ele traz uma fusão entre mulher e maternidade que reduz as mulheres a um papel e o faz de maneira idealizada, como se de um lado a natureza feminina se reduzisse à dedicação aos filhos, fosse constituída por um impulso para a maternidade, o maternal; e de outro lado, como se as mulheres vivenciassem a maternidade em condições muito adequadas e cuidar bem ou não de filhos fosse algo que pudesse ser escolhido por elas. Então, o ideal da maternidade não permite que as mulheres lidem de fato com as condições reais do exercício da maternidade.

Para que as condições reais do exercício da maternidade existam é preciso compreender como se define o caráter social da maternidade e a vulnerabilidade específica de uma parte das mulheres quando se tornam mães. É importante, por exemplo, pensar em que medida a defesa da maternidade se estende às mulheres que no Brasil perdem seus filhos assassinados pela polícia nas grandes cidades brasileiras, que são em sua maioria mulheres negras que têm se organizado e atuado politicamente de modo a trazer para a cena pública uma maternidade que pouco tem a ver com esse ideal daqueles que defendem a família como o esteio de uma ordem moral e social, e muitas vezes defendem as dinâmicas repressivas e as formas de violência que atingem diretamente os filhos dessas mesmas mulheres (Campos, 2015).

Como conectar então maternidade e Estado de direito ou maternidade e justiça social? Não é por meio do ideal da maternidade. Não é por meio da idealização romântica do que é o exercício da maternidade pelas mulheres.

também uma conexão bastante cruel entre a defesa da maternidade compulsória, isto é, a oposição ao direito ao aborto, em contextos em que o conservadorismo se estabelece de maneira bastante aguda, e uma baixa preocupação com as condições com que as mulheres reais exercem a maternidade, cuidam dos filhospartindo de uma recusa à possibilidade de que as mulheres tenham o direito de decidir se e quando querem ser mães, que aparece na forma da criminalização do direito ao aborto (Zanello, 2016).

É preciso, e as feministas negras têm feito isso décadas, colocar o problema da autonomia reprodutiva como algo que tem relação com o exercício da maternidade pelas mulheres que desejam serem mães. A experiência de muitas das mulheres negras no Brasil, bem como a experiência de mulheres indígenas na América Latina é a de uma recusa à possibilidade de que possam exercer a maternidade com segurança devido a políticas de esterilização que lhes recusam a possibilidade de que sejam mães.

Então, como é possível conectar o problema dos limites ao exercício da maternidade ao problema da recusa ao direito a decidir se serão ou não mães e quando serão ou não mães? É preciso olhar para o Estado e entender quais são os atores que conseguem incidir no âmbito do direito em países como o Brasil e outros países latino-americanos nos quais essa problemática se estabelece de fato conjuntamente.

O Brasil conta com um Estado altamente repressivo, uma legislação que torna a maternidade algo compulsório, e ao mesmo tempo, políticas que seguidamente demonstram o caráter racista do Estado e o modo como as vidas de mães reais e de seus filhos são tratadas é uma maneira que pouco tem relação com qualquer tipo de defesa da família, com qualquer tipo de idealização do papel das mulheres, como mães da sociedade.

Portanto, para além desseessencialismo’, considera-se que tudo isso são convenções sociais, e que uma mulher que vai precisar conjugar maternidade com uma carreira profissional, por exemplo, não tem que se justificar, ela tem de ser mãe da maneira como puder ser. E apesar de ser difícil sair dessas convenções todas, devido ao fato de pertencerem a uma cultura que estabelece o tempo todo como mulheres e homens devem agir, é papel de todos colocarem essas relações convencionadas em questão. É preciso criar maneiras de se pensar rupturas nessas convenções, nessas realidades.

 

 

3. Resultados e conclusão

 

 

Os resultados da pesquisa permitem evidenciar como a sociedade dominada pelo capitalismo e pelo patriarcado, que surge a partir da ideia de propriedade privada, afetou instituições como o casamento e a família e os transformou em um método para preservar estruturas sociais existentes, a partirda expansão da variedade de trabalhos domésticos.

No caso do casamento, junto com a ideia de maternidade, fica evidente o desafio a politização da maternidade em caráter emancipatório, de reconhecer o valor social, econômico e político do termo, o que tem sido sistematicamente negado. Nesses preceitos, o conceito de maternidade não se limita à sua dimensão biológica. O foco para as ciências sociais, para a antropologia perpassa pelos sentimentos e as emoções de uma forma mais complexa do que apenas tratar de hormônios, considerando que esse argumento seria muito simplista, haja vista que os seres humanos possuem várias dimensões, existe o biológico, o psíquico, o social, cultural, por envolver a nossa relação com o mundo, e para alguns, temos inclusive o lado transcendental.

Falar em maternidade pressupõe também relacionar a uma relação social, cultural e histórica, que muda ao longo do tempo e que se desenvolve em contextos sociais específicos e diversos, mas também variáveis. Ou seja, trata-se de um conceito tão complexo que cada experiência de maternidade não é como as demais, e mesmo sendo duas mulheres, ambas mães, muitas coisas que convergem e divergem uma da outra.

Ao refletir historicamente sobre o papel da mulher na sociedade percebeu-se que estaera tida como um ser fraco, tolo e incapaz, que precisa de um homem para poder se destacar na sociedade. Sem embargo, vimos que o sistema patriarcal identifica a feminilidade diretamente associada à maternidade. A sociedade tem um imaginário sobre o que realmente deve ser uma boa mulher, que nestes termos, é aquela mulher que apresenta sentimentos maternos por uma pessoa que ela considera sua filha ou filho.

Ao tratar dos papéis da mulher na sociedade atual: mãe, esposa, companheira de trabalho, administradora e mantenedora afetiva do lar, observou-se que o primeiro objetivo da mulher na sociedade é justamente ser mulher, pertencente à identidade. Observou-se que o fenômeno da maternidade não deveria ser um limitante para a realização de uma mulher, pois estas podem desejar ter êxitos profissionais ou pessoais sem se sentir excluída da sociedade simplesmente por não ter assumido o papel de mãe.

algo de natural na maternidade que naturalmente termina com a maternidade biológica, e esta por sua vez termina assim que nasce um bebê porque o que vem depois disso são formas de lidar com construções sociais e culturais. A partir do momento em que se criou a expectativa em termos do ‘ser mãe’, se essa mulher não cumprir aquilo que é colocado a ela como função feminina por excelência, concernente à natureza da mulher, ou se desvencilhar um pouco disso, lhes são incumbidos estereótipos diversos, como ‘mãe desnaturada’, ‘triste’, ‘incompleta’, etc.

Além disso, os arranjos familiares hão de ser considerados, pois estes são cada vez mais reconhecidos, e não necessariamente envolvem uma mãe e um filho ou a família nuclear clássica composta por pai, mãe e filho. Apresença da mulher no mercado de trabalho acaba por esvaziar esse lugar de dona de casa e responsável pelo cuidado dos filhos.

Por fim, os tempos mudam e hoje esses pensamentos arraigados estão evoluindo, graças à luta constante das mulheres que cada vez mais vêm conquistando seu reconhecimento na sociedade, graças ao surgimento do movimento feminista que vem atuando no sentido de abrir espaços hegemonicamente dominados pelos homens, principalmente os espaços da intelectualidade e o trabalho como um todo, portanto, lutando pela aceitação das mulheres em condições de igualdade no mundo.

 

 

Bibliografia

 

 

Aristóteles (2005): Politics. Londres: LoebClassical Library.

 

Badinter, Elisabeth (2003): Émilie, Émilie: A ambição feminina no século XVIII. São Paulo: Discurso Editorial.

 

_____. (1985): Um amor conquistado: o mito do amor materno. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

 

_____.  (2011): O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record.

 

Biroli, Flávia (2016): Divisão Sexual do Trabalho e Democracia. Dados – Revista de Ciências Sociais, vol. 59, pp. 719–754, 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/00115258201690 [10/06/2023].

 

Campos, Marta Silva (2015): “O Casamento da Política Social com a Família: feliz ou
infeliz?” Em: Regina Célia Mioto e Mariano Carloto (org): Familismo, direitos e cidadania: contradições da política social. São Paulo: Cortez, pp. 21-43.

 

Castro, Inês de (2006): Mamãe vai trabalhar e volta . São Paulo: Original.

Collins, Patrícia Hill (1990): “The social construction of Black feminist thought”. Em: Micheline Malson, Elisabeth Mudimbe-Boyi, Jean F. O’Barr, Mary Wyer: Blackwomen in America: social science perspectives. Chicago: The Universityof Chicago Press, pp. 297-325.

 

Davis, Ângela (2016): Mulheres, Raça e Classe. Rio de Janeiro.

 

Delphy, Christine (2015): “O inimigo principal: a economia política do patriarcado!”. Em: Revista Brasileira de Ciência Política, nº. 17. Brasília, pp. 99-119. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/wwgKkcLrkZv5qgnF6kRQfXs/?format=pdf&lang=pt [19/05/2023].

 

Engels, Friedrich (2006): “A origem da família da propriedade privada e do Estado” Texto integral. 2ª ed. rev. São Paulo: Escala.

 

Freitas, Waglânia de Mendonça Faustino e; de Coelho, Edméia de Almeida
Cardoso e Silva, Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da (2007): “Sentir-se pai: a vivência
masculina sob o olhar de gênero”. En: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol. 23,
nº. 1, p. 137-145, Jan. 2007. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0102-311X2007000100015  [21/05/2023].

 

Hirata, Helena (2001): “Globalização e divisão sexual do trabalho”. Em: Cadernos Pagu, nº. 17/18, pp. 139-156.

 

Gouges, Olympe de (1791): Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/mulheres.htm [02/02/2023].

 

Marx, Karl (1974): “Para a crítica da economia política”. Em: Karl Marx: Manuscritos Economicos Filosóficos e outros textos escolhidos. Nova Cultural: São Paulo, pp. 107-138.

 

Parseval, Genevieve Delaiside (1986): A parte do pai. Porto Alegre, L&PM.

 

Pateman, Carole (1993): O contrato sexual. Rio: Paz e Terra.

 

Pinto, Céli Regina Jardim (2003): Uma história do feminismo no Brasil. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo.

 

Rago, Margareth. (1997): “Trabalho Feminino e sexualidade”. Em: Mary Del Priori (org.): História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, pp. 578-696.

                                                                                                

Rousseau, Jean-Jacques (1999): Emílio ou Da Educação. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes.

 

Steves, Cristina M. T. (2007): “Maternidade e Feminismo: diálogos na literatura contemporânea”. Em: Cristina Steves (org.): Maternidade e Feminismos: diálogos interdisciplinares. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: Edunisc, pp. 17-79.

 

Thompson, Edward Palmer (1987): A formação da classe operária inglesa II: A maldição de Adão. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

 

Zanello, Valeska (2016): “Dispositivo materno e processos de subjetivação: desafios para a Psicologia”. Em: Valeska Zanello, e Madge Porto (orgs.): Aborto e (Não) Desejo de Maternidade(s): questões para a Psicologia. Brasília: CFP, pp. 103-122.