Violência doméstica e aspectos
socioeconômicos: enlaces, negociações e rupturas
Domestic violence and socioeconomic aspects: binding, negotiations and ruptures
Francelma Lima R. de
Oliveira |
Munique Therense |
Izaura Rodrigues
Nascimento |
Leandro Beiragrande da
Costa |
Ana Galdina dos Reis
Mendes |
André Luiz Machado das Neves |
Universidade do Estado do
Amazonas – UEA - Brasil |
Recibido: 23-03-2023
Aceptado: 30-05-2023
Resumo
O objetivo
foi identificar aspectos socioeconômicos relacionados à violência doméstica.
Adotou-se, na análise, a Teoria Social de Pierre Bourdieu. Optou-se pela
abordagem qualitativa, com análise documental e pesquisa de campo, utilizando
entrevista semiestruturada com nove interlocutoras atendidas em Serviço de
Apoio no município de Itacoatiara, Amazonas, Brasil. Como resultados tem-se que
as
variáveis de gênero e classe reforçaram relações conjugais com assimetria de
poder; medos relacionados à denúncia estavam fortemente relacionados à
fragilidade da efetivação do sistema de proteção de mulheres no cenário de
interior do Amazonas; o trabalho de cuidado familiar, em detrimento do trabalho
formal remunerado, foi dispositivo perpetuador da dependência financeira.
Palavras-chave: violência contra a mulher, implicações econômico-financeiras,
dominação masculina, Lei Maria da Penha, patriarcado.
Abstract
The objective
was to identify socioeconomic aspects related to domestic violence. Pierre Bourdieu's
Social Theory was adopted in the analysis. A qualitative approach was chosen,
with document analysis and field
research, using semi-structured
interviews with nine interlocutors assisted in the Support Service
in the municipality of Itacoatiara, Brazil. As a result, gender and class variables
strengthened marital relationships
with power asymmetry; fears related to the complaint were strongly related to the protection of the effectiveness
of the women's
protection system in the scenario of
the interior of the Amazon; family care work, to the
detriment of paid formal work, was the device
that perpetuated financial dependence.
Keywords: violence against women, economic-financial implications,
male domination, Maria da Penha Law,
patriarchy.
1. Introdução
Sob a ótica das ciências sociais, de acordo com Grossi (2008), a violência doméstica pode ser compreendida
de duas formas: a primeira, de caráter estrutural, se dá pela lógica centrada
na opressão das mulheres pelos homens, enquanto a outra tem como foco a
argumentação de que a violência é efeito da relação afetivo/conjugal. Diante
desses aspectos, lançou-se mão do conceito culturalista
da violência contra a mulher para análise dos resultados desta pesquisa, no
qual a opressão homem/mulher revela uma tendência essencialista que tende a
tornar-se universal nas relações entre homens e mulheres. Nele a violência é
entendida como um atributo natural do homem e não como um traço culturalmente
determinado. Já a segunda forma entende a violência na perspectiva de uma visão
culturalista, que parte de uma condição de interdependência
entre os membros familiares, para entender o uso da violência em uma relação
afetivo-conjugal (Grossi, 2008). Portanto, o olhar segue a trilha proposta pela
perspectiva relacional, fruto de um duplo vínculo que inviabiliza o
entendimento unívoco, uma vez que há sempre duas mensagens sendo transmitidas (Grossi, 2008; Oliveira, 2015).
Observa-se que essas duas perspectivas
acabam influenciando-se mutuamente na cultura acadêmica brasileira. Nessa
direção, parte-se da noção de violência como problema social, sendo necessário,
para a sua análise e compreensão, o apoio em elementos das teorias sociais.
Toma-se como exemplo as definições de indignação, exterioridade, homogeneização
e a negatividade do complexo “conjunto” de fenômenos abrangidos (Rifiotis, 2008), ideias que se orientam na
mesma direção trazida por Pierre Bourdieu (2019) em sua análise sobre a
dominação masculina em Cabila.
Bourdieu (2019) considera os fatores estrutural e
relacional para compreender a violência contra a mulher. Ambos comportam uma
relação de dominação e um campo de luta, no qual a força do grupo dominante nas
relações macrossociológicas reproduz-se nas relações afetivo-conjugal por meio
da naturalização dos comportamentos de homens e mulheres. Desse modo, a
violência física contra as mulheres é precedida e sustentada pela violência
simbólica, alicerçada por uma ordem social considerada normal. Entender como se
manifestam tais tipos de violência exige uma aproximação da realidade empírica,
de suas normas, do que revelam as estatísticas e, neste caso, das falas das
pessoas que foram vítimas de violência.
Na perspectiva jurídico-legal, a violência contra a
mulher é conceituada como violência doméstica e familiar na Lei nº 11.340, de 7
de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha. No art.
5 desta lei, a violência contra a mulher está definida como “qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral ou patrimonial” ocorrida no âmbito do seu espaço de
convívio, em relações estabelecidas por laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa ou, ainda, em qualquer relação íntima de afeto (Brasil, 2006).
Segundo o relatório de pesquisa intitulado “Visível e
Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil” (FBSP,
2021: 9), dois fatores se fizeram presentes nas três edições lançadas
(2017, 2019 e 2021):
“[...] as mulheres sofreram mais
violência dentro da própria casa e os autores de violência são pessoas
conhecidas da vítima.” Em termos de números, nos últimos dois anos, marcados
pelas medidas sanitárias de enfrentamento à pandemia de Covid-19 no país, foram
contabilizados 2.670 feminicídios e 110.214 casos de
estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino (FBSP, 2022: 4-9).
As estatísticas revelam o quão desafiador é o
enfrentamento da violência sofrida pelas mulheres brasileiras, sobretudo no que
tange à adoção de medidas preventivas, ações de proteção e acolhimento da
vítima, bem como a responsabilização e punição dos culpados. Agravando a
situação já delicada, no período de restrições impostas com vistas à redução do
contágio por Covid-19, as mulheres tiveram que conviver por um tempo maior com
seus agressores, sofreram com dificuldades financeiras e também com o efeito
danoso que adveio do seu isolamento: o consequente distanciamento da rede de
proteção.
Sob essa perspectiva, tendo por marco epistemológico para
compreensão da violência contra a mulher a teoria social de Pierre Bourdieu,
objetivou-se analisar aspectos socioeconômicos na vivência das interlocutoras
que são atendidas em um Serviço de Apoio à Mulher, Idoso e Criança, no
município de Itacoatiara, interior do Amazonas, Brasil. A cidade situa-se na
região metropolitana de Manaus, tem o segundo maior Produto Interno Bruto (PIB)
do estado e a terceira maior população. Possui porto fluvial e é considerado um
importante polo agroeconômico no Amazonas.
Neste artigo, a compreensão das mulheres que vivem no
interior do estado será amparada pela literatura sobre as ribeirinhas da região
Norte. Alves e Matos (2020) apontam que essas mulheres circulam entre os
espaços público e privado, desenvolvendo trabalho polivalente numa relação de
reciprocidade com o meio ambiente, na medida em que cuidam dele e, ao mesmo
tempo, nele produzem sua subsistência e produtos de comercialização. As autoras
alertam também para os estados de precariedade e subalternidade desses trabalhos,
em consonância com Oliveira e Nina (2014) que, outrora, já informavam sobre as
mulheres ribeirinhas acumularem as funções de donas de casa, trabalhadoras da
agricultura e agroindústria, bem como agentes políticas.
Assim, este artigo busca entender os aspectos
socioeconômicos estreitamente ligados ao fenômeno da violência doméstica,
subsidiando reflexões sobre as ações de combate e enfrentamento em regiões
situadas em contextos diferentes da capital, à luz da teoria social de Pierre
Bourdieu.
1.1. A Teoria Social de Pierre Bourdieu como marco
epistemológico para compreensão da violência contra a mulher
Pierre Bourdieu (1996), sociólogo francês, fundamentou
seu pensamento pela grande influência de Max Weber e Durkheim. Foi um dos
primeiros sociólogos europeus, de grande notoriedade nacional e internacional,
com análise voltada à sociologia da educação e da cultura que marcou gerações
de intelectuais. Dedicou-se à pesquisa das sociedades contemporâneas e das
relações sociais que mantêm os diferentes grupos sociais, tendo o sistema de
ensino como instituição que permite a reprodução da cultura dominante. Bourdieu
(2019) posiciona-se contra todas as formas de dominação e de mascaramento da
realidade social.
Inicialmente, convém frisar a relevância do estudo do
livro A Dominação Masculina (Bourdieu, 2019)
como instrumento reflexivo importante para este artigo e que se destaca nas
pesquisas das ciências sociais na área de pesquisa de campo. O autor utiliza o
povo Berberie, nativo da Cabília, região montanhosa
da Argélia, pois ali identificou uma forma de organização androcêntrica, onde
as relações culturais, simbólicas e estruturais colocavam o homem como
princípio de tudo. Em seus estudos, ele identifica uma forma taxonômica de tratar as relações de gênero,
classificando-as de forma binária, sempre com dois elementos de oposição, em
que as mulheres estarão do lado inferior, úmido,
curvo, baixo, enquanto os homens estarão do lado exterior, seco, direto e alto.
A principal temática do livro está no debate das relações
de dominação do gênero masculino sobre o feminino, que são feitas de forma
simbólica, buscando desnaturalizar, desmitificar as estruturas de dominação
que, com o decorrer da história, assumiram um caráter natural. Para Bourdieu
(2019), a dominação masculina é violência simbólica, violência que não é
percebida pelas próprias vítimas, que se esconde na visão cosmológica de uma
sociedade, enraíza-se nas práticas culturais, esconde-se na diferenciação
sexual, utiliza-se do corpo feminino como instrumento de controle. O resultado da violência simbólica é a
submissão paradoxal, que se expressa no reconhecimento e respeito pelas
condutas dominantes, retirando das mulheres o seu direito à ocupação de espaços
na sociedade.
A estrutura social é um sistema hierárquico em que os
diversos arranjos interdependentes de poder material e simbólico determinam a
posição social ocupada pelos grupos isoladamente. O poder tem múltiplas fontes,
por isso, a influência que um determinado grupo exerce sobre os demais é fruto
da articulação entre elas: poder financeiro, poder cultural, poder social e
poder simbólico (Bourdieu, 2003).
Não há como se falar da teoria bourdieusiana
sem ao menos mencionar brevemente os três principais conceitos desenvolvidos em
suas pesquisas durante as décadas de 1960 e 1970 sobre a vida cultural da
sociedade francesa: campo, habitus e capital. Estes devem ser estudados
em sua conexão e interdependência, e não como ideias separadas.
O habitus seriam estruturas constitutivas de um
tipo particular de meio, que podem ser aprendidas empiricamente sob a forma de
regularidades associadas a um meio socialmente estruturado. O habitus
encontra-se no princípio do encadeamento das “ações” que são objetivamente
organizadas como estratégias sem ser de modo algum o produto de uma verdadeira
intenção estratégica (Bourdieu, 1996).
O campo, por seu turno, diz respeito ao espaço onde se
desenvolvem relações de poder, de modo que as pessoas são construídas e
constroem, concomitantemente, o campo social em seu cotidiano, em uma
verdadeira interdependência com a estrutura social. Cada campo é caracterizado
pela distribuição desigual do poder naquele nicho de interesse, havendo, por
conseguinte, uma hierarquização decorrente do conflito entre dominantes, cuja
ação é conservadora no sentido de manter a conjuntura que está posta, e
dominados, que possuem comportamento revolucionário, visando desacreditar a
legitimidade dos atuais detentores do capital social daquele campo (Bourdieu,
1996).
Por fim, o capital refere-se aos ativos à disposição de
uma pessoa que lhe conferem posição de destaque em determinado campo,
constituindo o elemento central das disputas entre os agentes. Quatro são os
tipos de capital considerados por Bourdieu (1996): econômico (renda, recursos
materiais, posses); cultural (conhecimento formal, reconhecido por diplomas e
títulos); social (rede de relações que propicia algum tipo de vantagem); e
simbólico (privilégios sociais, status, honra). O conjunto desses
recursos de poder que o indivíduo detém determinará sua posição na hierárquica
estrutura das sociedades, condicionando seu proceder e suas oportunidades de
melhorar seu nível social.
2. Percurso metodológico
A caminhada metodológica norteou-se pela abordagem
qualitativa, por meio da qual é possível enfocar a compreensão e a explicação
da dinâmica das relações sociais, valorizando-se aspectos da realidade que não
podem ser quantificados, em razão de sua natureza subjetiva, que exigem análise
profunda e densa. Estas características são marcantes nesse tipo de pesquisa.
Para Minayo
(2009: 14), tal abordagem envolve “o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis”.
Quanto aos procedimentos técnicos, a presente pesquisa é
do tipo documental e de campo. Escolheu-se, como recorte do campo, o Serviço de Apoio à Mulher, Idoso e
Criança (SAMIC)/Casa de Maria,
localizado em um anexo da Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher
(DECCM) de Itacoatiara, no estado do Amazonas, Brasil, distante 176 km da
capital Manaus, e que faz parte de sua região metropolitana. O SAMIC,
administrado pela Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania
(SEJUSC), foi inaugurado em junho de 2019 com o intuito de disponibilizar uma
rede de serviços de atendimento especializado e multiprofissional. Diariamente,
oferece orientação, acolhimento e apoio às mulheres vítimas de violência e seus
familiares.
No que concerne aos documentos, foram consultados os
dossiês de mulheres encaminhadas ao Projeto SAMIC/Casa de Maria, constituídos
pelo Cadastro do Atendimento Individual da Mulher, Instrumento de Atendimento e
Mapa de Atendimento, desde que suas páginas não estivessem incompletas ou
danificadas, bem como os Boletins de Ocorrência registrados, para esses casos,
pela Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher (DECCM). As solicitações
desses documentos à coordenadora e ao Delegado Titular, respectivamente,
foram formalizadas por ofício. Tais documentos foram escolhidos em virtude de
conterem registros das características socioeconômicas das mulheres atendidas,
bem como notificações a respeito do trâmite institucional acionado a partir do
momento em que a delegacia foi interpelada. Assim, entende-se que a análise
documental visou mapear os conteúdos inscritos no papel, tomando as inscrições
como fontes reveladoras dos fenômenos que compõem o objeto pesquisado.
As interlocutoras da pesquisa foram nove mulheres sobreviventes de
violência, maiores de 18 anos e
que estavam realizando as atividades oferecidas pela Casa de Maria. Foram
excluídas aquelas que faziam uso abusivo de substâncias, como álcool e outras
drogas, e possuíssem vínculo empregatício em empresas
privadas com carteira assinada.
As entrevistas semiestruturadas foram realizadas na sala
da psicóloga do projeto, tendo sido utilizado um roteiro semiestruturado
composto por 11 perguntas que abrangiam a situação econômico-financeira
da vítima, sua vida pregressa trabalhista, se fez algum curso
profissionalizante, se alguma vez trabalhou fora de casa, se possuía renda para
o seu próprio sustento e o de seus filhos sem a ajuda do
marido/companheiro/autor da violência, e se essas situações impediram-na de
denunciar os autores da violência.
Relevante se faz salientar que, por terem sido abordadas
questões pessoais que envolviam um ambiente de violência, nos momentos de
desconforto, constrangimento e emoção durante a participação, as mulheres
estavam livres para interromper imediatamente a entrevista e retomá-la em outro
momento. Aliás, em qualquer momento e sem a necessidade de qualquer
justificativa, as vítimas poderiam desistir de participar da pesquisa.
Para análise dos dados, foram utilizados os fundamentos
teóricos e técnicos de Minayo (2013). Estes assumem
relevância no âmbito científico em relação à análise de conteúdo, com vistas à
compreensão de o material coletado confirmar ou não os pressupostos da pesquisa
e ampliar o entendimento de contextos para além do que se pode verificar nas
aparências do fenômeno. Ressalta-se que a organização das etapas para a análise
de conteúdo – pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados e
interpretação – deixa claro que as
intenções e ações não se apresentam de maneira estanque, linear e, sim, como um
roteiro didático para o tratamento dos dados, sendo importante que o
pesquisador tenha ciência de que isso pode passar por entrelaçamentos e idas e
vindas, se necessário.
Todas as participantes da pesquisa
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ressalta-se ainda a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade do Estado do Amazonas, sob o nº do CAEE 42192920.0.0000.5016 e
Parecer nº 4639460.
3. Resultados e discussão
Inicialmente, buscou-se traçar aspectos
sociodemográfico e econômico-financeiro das “Marias”
– termo que será utilizado para referir as nove interlocutoras atendidas pelo
Serviço de Apoio à Mulher, Idoso e Criança (SAMIC)/Casa de Maria de Itacoatiara
(AM).
Quadro
1. Características do perfil
sociodemográfico das “Marias”
Variáveis |
n |
% |
Idade
(anos) |
|
|
< 20 |
- |
- |
20 a 29 |
- |
- |
30 a 39 |
5 |
56 |
≥ 40 |
4 |
44 |
Formação
acadêmica (escolaridade) |
|
|
1º grau incompleto |
3 |
33 |
1º grau concluído |
1 |
12 |
2º grau incompleto |
- |
- |
2º grau concluído |
3 |
33 |
Faculdade |
2 |
22 |
Ganho
mensal (salário-mínimo) |
|
|
< salário-mínimo |
4 |
44 |
Salário-mínimo |
3 |
33 |
> salário-mínimo |
2 |
23 |
Atividades
que exerciam à época da denúncia |
|
|
Atividade informal (sem carteira assinada) |
6 |
67 |
Atividade formal (com carteira assinada) |
3 |
33 |
Tempo
para denunciar o agressor (anos) |
|
|
< 5 |
5 |
56 |
5 a 9 |
1 |
11 |
10 a 19 |
1 |
11 |
≥ 20 |
2 |
22 |
Fonte: elaboração própria.
As interlocutoras possuíam a idade média de 38 anos.
Portanto, já se encontravam na fase adulta, sendo uma delas casada no civil e
as oito restantes conviventes sem união estável formalmente reconhecida com os
autores da violência. Em relação à formação acadêmica, uma possuía faculdade e
outra o segundo grau completo, enquanto sete não tinham o segundo grau
completo, revelando que a maioria das vítimas atendidas na delegacia de
Itacoatiara (AM) não possuía alto grau de instrução ou mantiveram-se nos graus
iniciais de escolaridade.
Ao verificar as características do perfil econômico-financeiro das mulheres sobreviventes de
violência que participaram desta pesquisa, percebeu-se que mais da metade não
tinha renda formal na época da agressão. Os dados sobre o ganho mensal
indicaram que o trabalho informal (sem carteira assinada) de valor igual ou
inferior ao salário-mínimo foi prevalente. Conforme relatos das interlocutoras
que se encontram no Quadro 1, negociavam-se, na relação, modos de dependência e
as justificativas para o acordo:
Quadro
2. Contexto econômico-financeiro das mulheres vítimas
de violência
Dependência financeira |
Justificativa |
“[...] nunca trabalhei
porque meu marido nunca deixou.” |
“[...] sempre falava que o
dinheiro dele era suficiente para toda a família.” |
“Não trabalhei porque meu
marido não deixava.” |
“Ele não deixava que eu
trabalhasse porque dizia que eu não teria tempo para ele e para os nossos
filhos.” |
“[...] nunca trabalhei, era
sustentada por ele.” |
“Meu marido não deixava.
Ficava dizendo que eu tinha que ficar em casa cuidando dos filhos e dos
trabalhos domésticos.” |
“Apesar de ser
Assistente Social e ter trabalhado antes da gente se amigar, ele não deixava
que eu trabalhasse.” |
“[ele] ficava dizendo que se
eu tinha, que eu precisava ficar em casa para dar uma boa criação para os
nossos filhos. Além disso, a casa não poderia ficar bagunçada. |
Conforme se observa nos trechos nos quais se identifica a
dependência financeira, a negociação se dava a partir dos marcadores das
relações de gênero e das hierarquias entre homens e mulheres. Esses achados
dialogam com a pesquisa de Sousa e Guedes (2016), cujo resultado apontou para a
divisão sexual do trabalho desigual e desfavorável para as mulheres
brasileiras. Essa mesma pesquisa aponta ainda que permanece a separação
laboral, que reserva aos homens, de forma predominante, os espaços produtivos,
apesar de ter havido uma elevação em sua participação doméstica, e às mulheres,
o trabalho doméstico, pois a maior participação no mercado de trabalho que se
tem verificado, não veio acompanhada de uma compensação na realização dos
trabalhos da casa. Essa atividade continua como tarefa exclusiva delas e pouco
compartilhada com os homens.
Soma-se a essa compreensão as características do trabalho
feminino desempenhado em regiões do interior da região Norte do Brasil. Os
dados sobre a prevalência do trabalho informal declarado nos documentos
analisados contrastam com a percepção de ausência de trabalho verbalizada
durante as entrevistas. Em outras palavras, isso parece indicar que as mulheres
não vivenciavam o trabalho doméstico como trabalho remunerado, a despeito de,
tal qual sinaliza Federici (2019), ele ser fundamental para a manutenção do trabalho
masculino no ambiente fora de casa. A autora sinaliza ainda que elas não
reconheciam o trabalho informal como trabalho, apesar de gerar renda. Para
Oliveira e Nina (2014), a diluição da importância das atividades realizadas
aponta tanto para a não superação da divisão do trabalho com base em gênero,
quanto para a superação que caracteriza a existência das mulheres ribeirinhas.
No que diz respeito ao tempo que as
sobreviventes demoravam para denunciar os autores de violência, verificou-se
que a maioria levou menos de 5 anos para tomar essa decisão. Não obstante, o
lapso temporal, em dois casos, foi de mais de 20 anos. Relacionando esse dado
com aquele relativo à renda e à classe socioeconômica, observou-se uma
ratificação do que é encontrado na literatura científica no que diz respeito à
forma como as interseções entre os marcadores sociais da diferença (gênero,
classe, raça) atuam, dificultando a quebra do rompimento do ciclo de violência
(Prado e Sanematsu, 2017).
As narrativas das mulheres do Projeto
SAMIC/Casa de Maria, observadas nos trechos das entrevistas, quadros e análises documentais, permitiram
examinar o lugar da violência e sua relação
com aspectos econômico-financeiros.
Em primeiro lugar, pretende-se
apresentar o habitus da mulher do lar e a dominação masculina. Das “Marias”
entrevistadas, seis delas não possuíam renda própria porque, por algum motivo,
não trabalhavam, tendo suas despesas custeadas pelo marido/companheiro. Durante
a realização da pesquisa, identificou-se que, mesmo entre as participantes que
possuíam uma formação, na relação conjugal, foi estabelecida a condição de que
elas tinham que ficar cuidando da casa e dos filhos, conforme se constata no
Quadro 1.
Observa-se, nas narrativas, que todas as falas abordavam
a autorização do marido para trabalhar e as justificativas empreendidas por
eles para serem forjadas em mulheres do lar. Nos três fragmentos, identifica-se
a relação de dominação masculina. Observou-se, entre as Marias, a força da
divisão entre os trabalhos que deviam ser desenvolvidos na casa. De acordo com Bourdieu (2003), o trabalho desenvolvido em casa, como
cuidado, assistência e educação, é relegado ao lugar da mulher. Isso pode ser
considerado como uma violência simbólica, pois os seres humanos possuem quatro
tipos de capitais: o capital econômico (renda financeira), o capital social
(rede de amizades e convivência), o capital cultural (educação e artes) e o
capital simbólico (honra, prestígio e reconhecimento). É através desse último
que determinadas diferenças de poder são definidas socialmente. As falas das
Marias explicitaram esses aspectos, evidenciando a dominação masculina.
É por meio do capital simbólico que instituições e
pessoas transformam a sociedade. A violência simbólica se dá justamente pela
falta de equivalência desse capital entre as pessoas ou instituições. O
conceito foi definido por Bourdieu (2003) como uma violência com a cumplicidade
de quem sofre e de quem a pratica, sem que, necessariamente, os envolvidos
tenham consciência do que estão sofrendo ou exercendo. Por isso, é uma
violência silenciosa e invisível. Como se observou nas narrativas das Marias,
foi na relação conjugal que se estabeleceram as condições da violência, apesar
de existir algum nível de consciência. Entretanto, cabe considerar que,
culturalmente, por meio dos modelos de gênero, convencionou-se a força da
divisão entre os trabalhos que devem ser desenvolvidos na casa e fora dela (Hirata e Kergoat, 2007). Nesse sentido, desde muito
cedo, isso é naturalizado nos processos de desenvolvimento de homens e
mulheres.
Em que pesem as mudanças sociais resultantes das
lutas feministas, não é possível afirmar o fim da dominação masculina. A força
da divisão de trabalho, por exemplo, parece ser uma das engrenagens que
perpetua a assimetria de poder. Nesse sentido, cabe acionar a reflexão de
Bourdieu (2019: 18):
“A força da ordem masculina se evidencia
no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como
neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a
legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que
tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão
social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada
um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura
do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e
a casa, reservada às mulheres; ou, no interior desta, entre a parte masculina,
com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a
estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos
de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos.”
Entretanto, há uma ordem social produzida em um sistema
de disposições, modos de perceber, de sentir, de fazer, de pensar, que levam as
pessoas a agirem de determinada forma em uma circunstância dada, como é o caso
da negociação das Marias com seus cônjuges. Essa negociação foi atravessada por
um sistema de repertórios de modos de pensar, gostos, comportamentos, estilos
de vida, herdado da família e reforçado na escola. Isto é, os modelos
relacionais de gênero, em que aos homens, através da articulação dos capitais
econômico, cultural, social e simbólico, se conferem alta posição na hierarquia
social. Cabe, nesse sentido, lançar mão de Bourdieu (2019: 41), quando
considera:
“As divisões constitutivas da ordem social e, mais
precisamente, as relações sociais de dominação e de exploração que estão
instituídas entre os gêneros se inscrevem, assim, progressivamente em duas
classes de habitus diferentes, sob a forma de hexis corporais
opostos e complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a
classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções
redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino.”
As falas das Marias, revelaram, dessa forma, a
incorporação das estruturas sociais em um indivíduo ou em um determinado grupo
traduzido por Bourdieu (2003) como habitus.
Este é adquirido de acordo com a posição social da pessoa, conforme o lugar de
disputa em que está inserida. Isso vai permitir ao indivíduo formar posições
sobre os diferentes aspectos da sociedade, como foi o caso das Marias, e elas
ficaram na posição das que cuidam, limpam e passam: as mulheres do lar, cujo
trabalho é não remunerado e entendido como cuidado e amor (Federici, 2019).
A posição nesse lugar de disputas – quem cuida da casa e
dos filhos versus quem sai para
trabalhar –, pode ser moldada pelo habitus.
Este é o princípio gerador e unificador que retraduz as características
intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é,
em conjunto unívoco de escolhas, de bens, de práticas (Bourdieu, 1996). E o
autor prossegue:
“O habitus são princípios geradores de práticas
distintas e distintivas – o que o operário come, e sobretudo sua maneira de
comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões
políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou
das atividades correspondentes ao do empresário industrial; mas são também
esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e
de divisão e gostos diferentes. Eles estabelecem a diferença entre o que é o
bom ou é mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é vulgar
etc., mas elas não são as mesmas. Assim, por exemplo, o mesmo comportamento ou
o mesmo bem pode parecer distinto para um, pretensioso ou ostentatório para
ouro e vulgar para um terceiro” (Bourdieu, 1996: 22).
Em segundo lugar, quer-se demonstrar o casamento
como campo, com seus impedimentos, dinheiro e táticas de renda. Durante
as entrevistas, questionou-se de modo mais diretivo se, em algum momento, o
companheiro/marido a havia impedido de obter emprego e a resposta afirmativa
foi unânime. Destacam-se as respostas de três participantes:
“Sim. Todas as vezes que falava
sobre procurar um emprego, ele desconversava e dizia que o dinheiro dele dava
para a família toda, e que eu não precisava trabalhar” Maria (8).
“Todas às vezes, ele me impedia de
trabalhar. Sempre dizia que lugar de mulher era em casa cuidando dos filhos e
do marido. Nunca trabalhei por causa disso” Maria (9).
“Sempre me impediu de trabalhar
fora. Então, comecei a trabalhar em casa, fazendo bolos e conseguindo meu
próprio dinheiro. Quando descobriu, começou a ficar com o meu dinheiro e a
gastar com bebida e cachaça” Maria (4).
Os relatos acima revelam o controle sobre a pessoa por
meio do controle dos recursos. O casamento forja-se, nas narrativas acima, como
um campo no sentido abordado por Bourdieu (2003). As negociações que geraram o
impedimento de trabalhar, a ideia de que o dinheiro do marido era suficiente ou
a produção de táticas para geração de renda remetem à produção da violência
simbólica. Segundo Bourdieu (2003), é sempre esperado que o homem tenha o
capital maior do que o da mulher, independentemente do tipo. Isso se dá pela
naturalização da dominação masculina na sociedade. Ao julgar a mulher incapaz
de ocupar determinados cargos, oferecer salários mais baixos para elas em
mesmos cargos que homens e considerar que elas devem ganhar menos porque
engravidam, há aí um dolo simbólico que reflete nos outros campos, como o
econômico.
Tais aspectos podem ser observados nas narrativas das
participantes, nos contextos em que o dinheiro do marido era considerado
suficiente para contemplar também as suas demandas socioeconômicas, ou quando
dada a afirmação de que lugar de mulher era em casa, cuidando dos filhos e do
marido, ou ainda quando impedida de trabalhar. Entretanto, observa-se, nessa
trilha, não somente a submissão das Marias à negociação, mas formas de
resistência a essa dominação masculina. A tática de produzir bolos para obter
renda, apesar de desapropriada após descoberta pelo marido, sinaliza a
constituição da relação como espaço de luta, em que os instrumentos do dominado
mostraram-se inferiores aos mobilizados pelos dominantes, tal qual definido por
Bourdieu (2003).
A ideia de dominação masculina sobre o corpo da mulher é
refletida também em outros contextos, como nos casos de feminicídio,
assassinato de mulheres pela razão de ser mulher (Ferreira
e Neves, 2020). O crime era anteriormente tido como algo passional
(assassinato por amor), mas, atualmente, é compreendido como a materialidade da
objetificação do corpo feminino, utilizado para mostrar a existência de uma
noção de superioridade do homem. Os casos de feminicídio acontecem geralmente
após o término de um relacionamento, em contextos em que homens, por
acreditarem que têm a propriedade sobre o corpo da mulher e por considerarem
que não têm nada a perder, cometem assassinatos (Ferreira e Neves, 2020).
Ressalta-se, entretanto, que a dominação simbólica não é
prerrogativa da classe dominante, porquanto também esta depende da estrutura do
campo, sofrendo limitações oriundas de todas as demais. A diferença entre os
dominantes e os dominados encontra-se, principalmente, no acesso privilegiado
ao sistema simbólico que possibilita à classe hegemônica impor ou legitimar
aquilo que lhe é próprio e caro, distinguindo-se dos demais (Bourdieu, 2003).
Assim,
“[...] a força da ortodoxia, isto é, da
dóxa direita e de direita que impõe todo tipo de domínio simbólico (branco,
masculino, burguês), provém do fato de que ela transforma particularidades
nascidas da discriminação histórica em disposições incorporadas, revestidas de
todos os signos do natural” (Bourdieu, 2003: 147).
Ao analisar a estrutura social que se vive, na qual
homens buscam, através da subordinação financeira, uma forma de dominação das
suas companheiras/mulheres, todas as Marias, quando perguntadas se o casamento
poderia findar se elas tivessem independência financeira, afirmaram que “sim”
ou “sim, com certeza”. Percebe-se que a dependência econômica influenciava
muito na forma que o homem negociava o casamento com as entrevistadas. As
narrativas possibilitaram analisar que os companheiros e maridos costumavam deixar
suas mulheres dependentes para, assim, vencerem a disputa no casamento.
O casamento das participantes, aqui entendido como
um campo, possuía uma lógica interna própria. Uma lógica que só era entendida
por quem estava dentro do campo e para quem possuía o habitus desse campo, que era uma lógica diferente de outros campos,
como, por exemplo, aceitar não poder trabalhar ou trabalhar escondido. Dentro
desse campo, cada capital específico só teria valor para os que estavam dentro
do campo, dentro daquela determinada sociedade.
Bourdieu (1996) analisa o grau de autonomia em um campo pela sua
capacidade de refratar, que seria a capacidade do campo de retraduzir, de forma
específica, as pressões ou as demandas externas. Quando os fatores externos
transparecem dentro de um campo, como fatores econômicos e políticos, e onde os
interesses do campo estão ligados a interesses externos, é onde o campo é mais
dependente.
Entre as narrativas, todas as Marias reafirmaram que a
dependência econômica, ou seja, o campo econômico postergou a denúncia dos
autores de violência e o contato com as outras pessoas ou com pessoas
esclarecidas fez com que essas mulheres tomassem coragem e percebessem que
poderiam ir em frente sem seus agressores. O que chamou a atenção foi o fato de
três mulheres afirmarem que não denunciaram antes seus companheiros/maridos por
medo, pois ficou claro também que existia uma tendência de aumento das
agressões depois da denúncia ser feita na delegacia:
“Sempre tive medo de denunciar o
meu companheiro, porque achava que, quando ele soubesse, iria me matar. Ele
dizia que, se eu fosse na delegacia, ele iria me matar.” Maria (8).
“Todas às vezes que ele me batia,
eu dizia que ia à delegacia denunciá-lo e, por medo, nunca ia” Maria (9).
“Sempre me impediu de sair de
casa. Achava que eu ia na delegacia denunciá-lo e, por medo das agressões, eu
nunca ia” Maria (4).
“Como eu não tinha dinheiro para
sequer sair de casa, tinha sempre que pedir dele, dinheiro para qualquer coisa.
Isso fez com que eu demorasse para ir na delegacia” Maria (1).
“Todas às vezes que ele me dava
dinheiro, perguntava para que eu queria, e me dava o dinheiro contado. Isso me
impediu várias vezes de ir até a delegacia, porque tinha outras coisas para
comprar” Maria (3).
“Meus amigos e vizinhos, me viam
machucada e me falavam sobre a lei Maria da Penha. Foi assim que decidi ir à
delegacia para denunciá-lo” Maria (2).
“Todas às vezes, ele me impedia de
sair de casa para ir à delegacia. Dizia que ia mudar e que as agressões nunca
mais iam acontecer” Maria (6).
“Sempre me impediu de trabalhar
fora, porque as pessoas me viam machucada e começavam a me mandar ir à
delegacia, dizendo que aquilo era crime e ele deveria parar na cadeia” Maria
(7).
Todas, e eles também, de algum modo, tinham ideia
de que poderiam denunciar o autor de violência, o que denota maior tentativa de
controle por parte dele. As falas também denotam o conhecimento e a reação da
sociedade. Um campo em luta, de modo geral, mas se impondo pela ameaça no
âmbito microssociológico das relações dos casais.
Para elas, as mulheres que denunciam os atos de violência
acabam retornando para suas casas e, quando os autores da violência descobrem,
ficam mais nervosos e agressivos, exacerbando as agressões. Esse cenário de
amplificação da violência deixa as sobreviventes com medo de procurarem a
delegacia.
Em terceiro lugar, deseja-se expor a dominação
masculina como cultura dominante e os seus efeitos na vida das mulheres.
A renúncia aos estudos foi uma narrativa presente entre as interlocutoras. Esta
característica encontrada entre elas expressa o comportamento próprio da
cultura dominante, o que favorece a identificação com seus códigos culturais.
No caso das interlocutoras, a dedicação ao trabalho doméstico ou de suporte
familiar parecia um código estabelecido em suas negociações cotidianas. Com
isso, não acessavam ao que Bourdieu (1996) chama de capital cultural, de modo
que classes privilegiadas, no caso dos homens, possuem mais chances de sucesso
e domínio dos códigos culturais, como os escolares, e desse modo podem obter
mais autonomia. Os fragmentos a seguir são ilustrativos:
“Nunca estudei porque fiquei
grávida muito cedo e tive que deixar de ir à escola para cuidar da casa e dos
filhos” Maria (8).
“Nunca trabalhei fora porque
deixei os estudos quando era pequena. Achei que não valia a pena estudar e
acabei engravidando” Maria (9).
“Não consegui terminar meus
estudos porque tive que ajudar minha mãe, vendendo doces na rua. Precisávamos
de dinheiro para comer” Maria (4).
Esses excertos de narrativas apontam para a feminilização
do cuidado e sua estreita relação com os aspectos socioeconômicos imbrincados
na violência doméstica. As Marias eram mulheres que se dedicaram ao cuidado dos
filhos, da casa e da renda familiar oriunda do trabalho informal, tipos de
trabalho invisibilizados. Como aponta Federici (2019), a despeito das suas
atividades manterem os cônjuges (e/ou o mundo) em movimento laboral, essas
mulheres e a sociedade em que estão inseridas percebem essa atividade como
ausência de trabalho.
Nesse contexto social marcado pela diferença, ocorrem
embates simbólicos entre as classes e suas frações motivados pela conquista ou
manutenção de uma posição de domínio e pelo monopólio da violência simbólica.
As classes que almejam ascensão na hierarquia social engajam-se nessas lutas no
intuito de superarem sua condição de subjugadas e se tornarem as definidoras
dos preceitos que balizam o mundo social, obtendo, assim, poder para impor e
inculcar instrumentos de conhecimento e de expressão da realidade (Bourdieu,
1996). Na relação social em análise, trata-se da relação entre homens e
mulheres, estando os primeiros na condição de dominantes.
Constata-se, em Bourdieu (2003), que os efeitos do poder
simbólico inscrevem-se nos corpos, tornando-se duradouros. No mercado
simbólico, uma relação de sujeito e objeto se estabelece, na qual a mulher
corporifica o bem, que tem um simbolismo muito forte dentro dessa estrutura de
mercado, sobretudo frente ao casamento e à família. Isso porque, no mercado
simbólico – que se consolida através da atribuição de valor às coisas e às
pessoas –, ela, a mulher, é o bem mais valioso, uma vez que a perpetuação de toda
uma linhagem depende dela. É ela que assegura a perpetuação do próprio mercado
de trocas simbólicas.
A dominação masculina sobre a mulher fundamenta-se, pois,
no valor que ela representa dentro desse mercado de bens e trocas simbólicas,
já que a mulher agrega valor ao homem. As práticas violentas dentro desse
contexto permitem, então, ao homem afirmar e reafirmar seu valor dentro do
grupo e acumular capital simbólico: a honra e a virilidade. A imagem que o
homem tem de si mesmo é aquela do ser legítimo, aquele que detém o direito de
definir qual é a verdade.
A violência simbólica é exercida pelo poder simbólico.
Segundo as palavras do próprio Bourdieu (2003: 11):
“É enquanto instrumentos estruturados e
estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos
cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da
dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra
(violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força
que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a
‘domesticação dos dominados’”.
Os sistemas simbólicos servem como meios de dominação. A
ideologia passada para a sociedade, através dos meios simbólicos de dominação,
é transmitida como desinteressada, ou seja, como se não fosse uma ideologia ou
instrumento de dominação, quando, na verdade, é de interesse da classe
produtora dessa ideologia, a classe dominante.
Retornando às ideias originais de Bourdieu (2003: 7-8), a
violência simbólica é uma “[...] violência suave, insensível, invisível às suas
próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas
da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do
reconhecimento ou, em última instância, do sentimento”. Destarte, a dominação
simbólica instaura-se por intermédio de um processo sustentado pela existência
e pelo reforço de pensamentos e predisposições alinhados às estruturas
impostas, refletindo em ações de conhecimento, reconhecimento e submissão ao
instituído por parte dos dominados que, julgando autoevidente tal processo, não
conseguem romper com ele, conspirando para a sua própria dominação (Bourdieu, 2019).
Ainda que a violência seja sentida e identificada como
tal, percebe-se que as narrativas apresentaram em comum o medo das vítimas de
alguma atitude posterior dos agressores, como: medo de morrer, medo de
denunciar e as agressões aumentarem, medo de nunca sair do ciclo de violência
e, por último, medo de não conseguir sobreviver junto com os filhos, sem a
ajuda financeira dos seus agressores.
“[...] de viver apanhando o resto
da vida.”; “medo de morrer em uma dessas agressões”. [...] “medo de não ter
como se sustentar” Maria (8).
“Meus filhos cresceram e começaram
a cobrar uma atitude minha em relação à violência” Maria (4).
“Meus parentes viam e me cobravam
uma atitude com relação à violência sofrida.”; “Meus amigos me viam triste e
abatida e percebiam a violência sofrida” Maria (2).
“Ele me deixava sem dinheiro, para
poder não sair de casa e, com isso, não ir à delegacia denunciar” Maria (7).
Outra informação que chama atenção nas entrevistas é o
fato de todas as vítimas afirmarem que, depois da denúncia na delegacia, as
agressões não cessaram, ao contrário, intensificaram-se, o que nos permite a
reflexão de que somente a judicialização da violência não é suficiente, já que
a maioria delas retornava para a mesma casa do agressor denunciado. Em alguns
casos, os homens autores de violência buscavam persuadi-las a voltar à
delegacia para “retirar a queixa”.
Percebe-se que, entre o processo de solicitação das medidas protetivas de
urgência e a autorização do Juiz, há um lapso temporal que pode salvar a vida
de muitas mulheres vítimas de violência doméstica, principalmente naqueles
municípios mais distantes da capital.
Nesse sentido, avalia-se que, como decorrência do
exercício do poder simbólico, tem-se a violência simbólica, a qual se
estabelece “por meio de um ato de cognição e de mau reconhecimento que fica
além – ou aquém – do controle da consciência e da vontade, nas trevas dos
esquemas de habitus que são ao mesmo
tempo generados e generantes.” (Bourdieu, 1996: 22-23).
Destaca-se que, apesar da denominação dessa violência
estar vinculada a um âmbito simbólico, tal conceito não desconsidera as
manifestações reais do poder e da violência, como situações em que pessoas são “[...]
espancadas, violentadas, exploradas”, mas busca visualizar, “na teoria, a
objetividade da experiência subjetiva das relações de dominação” (Bourdieu,
2003: 43).
Nesse contexto, as reflexões voltam-se às condições de
efetividade da Lei Maria da Penha. Esta lei não pode ser tratada apenas como
uma via jurídica para se punir os agressores, haja vista que ela também traz em
seu texto o conceito de todos os tipos de violência doméstica e familiar;
insere a criação de políticas públicas de prevenção, assistência e proteção às
vítimas; prevê a instituição de Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; institui as medidas protetivas de urgência; e estabelece a
promoção de programas educacionais com perspectiva de gênero, raça e etnia,
entre outras propostas.
Todos esses dispositivos intensificam uma rede integrada
de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, além de
atenderem às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Mais
do que uma alteração da legislação penal, a Lei n. 11.340/2006 representa um
importante instrumento legal de proteção aos direitos humanos das mulheres para
uma vida livre de violência. No entanto, a vulnerabilidade e as fragilidades no
sistema de concretização dos direitos adquiridos pelas sobreviventes de
violência doméstica esbarram em desafios institucionais estruturais que se
mantêm como obstáculos para defesa ágil das vidas das mulheres. No art. 18, a
lei estabelece (Brasil, 2006):
“Art.18. Recebido o expediente com o
pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e
decidir sobre as medidas protetivas de urgência;
II - determinar o encaminhamento da
ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso;
II - determinar o encaminhamento da
ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso, inclusive para
o ajuizamento da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de
casamento ou de dissolução de união estável perante o juízo competente;
III - comunicar ao Ministério Público
para que adote as providências cabíveis.
IV - determinar a apreensão imediata de
arma de fogo sob a posse do agressor.”
As medidas protetivas de urgência correspondem a uma
determinação do juiz na tentativa de proteger a mulher em situação de violência
doméstica, familiar ou na relação de afeto, conforme a necessidade da
solicitante. Elas podem ser demandadas já no atendimento policial, na
delegacia, e ordenadas pelo juiz ou juíza em até 48 horas, devendo ser emitidas
com urgência nos casos em que a mulher corre risco de morte. No entanto, essas
48 horas são cruciais e muitas vezes fatais para as mulheres que, por vezes,
voltam ao seu lar e ao convívio com o autor da violência.
Toma-se como exemplo o Gráfico 1, que demonstra como a
quantidade de BOs registrados não corresponde nem à metade das medidas
protetivas solicitadas perante o juízo da Comarca de Itacoatiara.
Gráfico 1. Registro
de Ocorrências x Instauração de Medidas Protetivas de Urgência
Fonte: elaboração própria.
Nessa estatística da Delegacia especializada em crimes
cometidos contra as Mulheres de Itacoatiara, tem-se uma noção de que a maioria
das denúncias não acaba se concretizando em Medidas Protetivas de Urgência.
4. Conclusão
Buscou-se, com este artigo, analisar os aspectos
socioeconômicos dos casos de violência doméstica contra as mulheres atendidas
pelo Serviço
de Apoio à Mulher, Idoso e Criança (SAMIC)/Casa de Maria de Itacoatiara (AM), no interior do estado do Amazonas.
Ao se pensar na violência contra as mulheres, faz-se
necessário perceber que as variáveis de gênero e classe são fatores que, nas
trajetórias das interlocutoras, reforçaram relações conjugais com assimetria de
poder. Na relação em que a violência doméstica estava presente, essas variáveis
mostraram-se condições de perpetuação da violência e dificuldade de realizar
denúncia capaz de romper com o ciclo de violações da dignidade da pessoa humana
e dos direitos humanos.
Esse cenário também mostrou os medos relacionados à
denúncia da situação de violência, fortemente relacionados à fragilidade da
efetivação do sistema de proteção de mulheres no cenário de interior do
Amazonas. Por meio das narrativas das interlocutoras foi possível concluir que
elas tinham medo das atitudes dos maridos/companheiros pós-denúncia de
violência doméstica, pois, na maioria das vezes, as agressões aumentavam e o
ciclo de violência não era interrompido, uma vez que retornavam a conviver com
seus algozes e, agora, denunciados à polícia. Elas desistiam da queixa ou não
retornavam à delegacia, ou, ainda, pensavam que, ao fazerem um boletim de
ocorrência já estariam resguardadas.
Entretanto, existe todo um processo para que a denúncia
realmente se concretize até que sejam adotadas as medidas protetivas de
urgência ou ocorra a prisão do autor da violência. Neste sentido, observou-se
que os trâmites jurídico-legais não acompanham, de forma concomitante, as
urgências oriundas das situações que ameaçam a vida.
Por fim, ao enfatizar os aspectos socioeconômicos das
sobreviventes de violência, compreendeu-se que o trabalho de cuidado familiar,
em detrimento do trabalho formal remunerado fora de casa, foi dispositivo
perpetuador da dependência financeira. Nas negociações conjugais cotidianas, as
Marias, dedicadas exclusivamente ao trabalho doméstico não remunerado, aquelas
que realizavam trabalhos informais (sem carteira assinada) e as que possuíam
vínculo trabalhista formal, vivenciaram com insegurança suas condições
econômicas, mostrando que seus instrumentos de resistência utilizados na luta
pelo exercício de poder eram inferiores aos do dominador. Mesmo aquelas que
dispunham de renda compreenderam-se em posição de dependência financeira.
Assim, considerando a relação da mulher ribeirinha com o
meio ambiente, convém refletir a respeito das possibilidades de trabalho formal
destinado a ela, no intuito de fortalecer sua segurança econômica. Além das
atividades que viabilizam inserção no mercado informal, tais como cursos de
artesanato e outros, vislumbra-se, no horizonte de referências, a oferta de
cursos profissionalizantes, por meio de parcerias institucionais.
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